Por Ana Souto e Silva, Advogada associada da Cerejeira Namora Marinho Falcão
Gradualmente e de forma cada vez mais consistente, acompanhando (espera-se!) a evolução da mentalidade e comportamentos sociais, a legislação portuguesa tem avançado no sentido de proteger os animais de companhia, o seu bem-estar e a própria vida.
Normatizados, no ano de 2014, os crimes de abandono, maus-tratos e morte de animais de companhia, com a previsão de molduras penais de pena de prisão ou de multa, em 2020 o legislador foi mais longe e passou a prever especiais circunstâncias de censurabilidade ou perversidade para agravamento da pena basilar aplicável. Mas a batalha não acabou. Em acórdão datado do transato dia 26 de setembro, o Tribunal da Relação de Guimarães entendeu como materialmente inconstitucional a norma do Código Penal de crime de maus-tratos a animais, e consequente absolvição da arguida, com fundamento na falta de determinabilidade objetiva da previsão das condutas proibidas e puníveis. Se a restrição à punição dos atos de crueldade sobre os animais reside na indeterminação da lei, urge naturalmente uma nova revisão.
Não obstante, é clara a positiva evolução a que se tem vindo a assistir.
É relativamente recente a notícia veiculada na comunicação social de que Espanha criou uma rede para proteção e acolhimento temporário de animais de companhia de vítimas de violência doméstica. Utilizados pelo agressor como arma de arremesso para exercer violência psicológica contra a vítima, seja como instrumento de represália, chantagem e intimidação, seja como forma de controlo quando a vítima não dispõe de meios para abandonar o lar sem a segurança de que os seus animais ficarão protegidos, emergiu a necessidade de discutir o avanço nas medidas para inclusão dos animais de estimação nos programas de combate à violência doméstica. E Portugal não passou ao lado desta conjuntura.
Não sendo permitido na maioria das casas-abrigo o acolhimento e proteção dos animais das vítimas, em 2020 o partido político PAN apresentou uma proposta de aditamento ao Orçamento do Estado para 2021, no sentido de assegurar a adaptação das casas de abrigo de vítimas de violência doméstica ao acolhimento de animais de companhia. Esta proposta mereceu acolhimento nos Orçamentos do Estado de 2021 e 2022, e surge igualmente refletida na proposta do Orçamentos do Estado para 2023: «O Governo prossegue a adaptação das casas de abrigo de vítimas de violência doméstica e dos albergues de pessoas em situação de sem-abrigo, por forma a assegurar o acolhimento de animais de companhia, garantindo essa possibilidade relativamente às casas de abrigo ou albergues que sejam criados após a entrada em vigor da presente lei».
Não se tem assistido à progressão ideal nos necessários ajustes em marcha, e disso mesmo foi dado o alerta, ainda no corrente ano, pela Provedora do Animal, em reação à proposta da diretiva da Comissão Europeia para prevenir e combater a violência contra as mulheres e a violência doméstica. Contudo, é de mencionar e louvar o projeto piloto designado ‘Animais protegidos, vítimas protegidas’, avançado em meados de 2021 pelo Município de Gaia, com o intuito de asseverar o rápido acolhimento de animais que se encontrem nessa circunstância, e que sejam sinalizados pelas entidades competentes.
Podendo não verificar-se na globalidade dos casos, tem vindo a comprovar-se uma real conexão de existência de maus-tratos a animais de companhia por parte daquele/a que também seja o/a agressor/a da(s) vítima(s) de violência doméstica. Nestas circunstâncias estão em causa dois seres: o humano que é alvo da reiterada opressão, e que através do animal sofre do uso de mais um instrumento para violentá-lo; e o animal em si mesmo, sobre o qual incidem também os maus tratos físicos por forma a sobrecarregar o abuso psicológico sobre o humano. E nessa medida torna-se, então, fulcral a integração, no próprio combate à violência doméstica e à proteção das vítimas, de medidas que englobem igualmente a proteção dos seus animais de estimação, para que possam elas próprias afastar-se e sobreviver aos abusos de que são alvo.
Aguardemos a aprovação da proposta do Orçamento do Estado de 2023, com a expectativa de que a medida passará do papel para a efetiva aplicação de medidas neste âmbito.