Apesar de se definir como uma pessoa tímida e bastante retraída, não lhe faltavam sorrisos. Dizia que graças à música sempre teve um bom relacionamento com as pessoas. A música era “o seu sangue”, como frisou em várias entrevistas. A verdade é que Gal Costa, é considerada uma das maiores artistas da música brasileira, ao lado de nomes como Caetano Veloso, Gilberto Gil, Maria Bethânia ou Tom Zé. Morreu esta quarta-feira de manhã, aos 77 anos. A informação foi avançada pela sua assessoria de imprensa, que não indicou a causa da morte.
Segundo a Globo, a cantora estava afastada dos palcos para recuperar de uma cirurgia realizada em setembro onde retirou um nódulo da fossa nasal direita. Chegou mesmo a cancelar à última hora a participação que faria no festival Primavera Sound, em São Paulo, no último fim de semana. Segundo as recomendações médicas, Gal Costa devia fazer uma pausa até ao final de novembro. Desde outubro do ano passado, que a diva brasileira viajava pelo Brasil com a tour As várias pontas de uma estrela, no qual revisitava grandes sucessos dos anos 80 da Música Popular Brasileira (MPB), incluindo Açaí, Nada mais, Sorte e Lua de mel. A agenda da cantora previa espetáculos na Europa ainda este ano, dois deles em Portugal, marcados para novembro em Lisboa e Porto, que haviam sido adiados para o próximo ano pela mesma razão.
A ascensão da cantora
Nascida em Salvador, na Bahia, em 1945, com um pai ausente, sempre foi incentivada pela mãe a seguir carreira na música. “Desde pequena, quando vivia na Bahia, eu queria ser cantora. Segui a intuição. Saí de lá com dinheiro emprestado de um primo, fui para o Rio, passei dificuldade. Mas era uma missão, que é como encaro o meu trabalho. Faço bem às pessoas por meio da música”, acreditava a artista.
De acordo com a Globo, em menina, nos anos 60, chamavam-na de “Gracinha”, dona de uma voz suave e afinada. Até que um dia encontrou o mito da bossa nova, João Gilberto, que ao ouvi-la terá dito: “Você é a maior cantora do Brasil”. Não estava enganado… De Maria da Graça Costa Penna Burgos, passou para Gal Costa; começou na bossa-nova; mergulhou no Tropicalismo ao lado de Caetano Veloso e Gilberto Gil; percorreu caminhos da MPB e do pop, e acabou por se estabelecer “como uma das maiores vozes femininas num país de enormes vozes femininas”, escreve o jornal brasileiro.
Estreou-se em agosto de 1964, no espetáculo Nós, por exemplo, ao lado de Maria Bethânia, Caetano Veloso e Gilberto Gil, com quem integraria o grupo conhecido como Doces Bárbaros, responsáveis mais tarde por um disco importante da década de 1970, Tropicália ou Panis et Circencis, considerado “pedra fundamental do movimento tropicalista”. Um ano depois, fez um dos espetáculos de maior repercussão da história da música popular brasileira, o Fa-Tal, que também viria a tornar-se um álbum de culto.
Em 1966, já havia participado no I Festival Internacional da Canção, no Rio de Janeiro, e, no ano seguinte, editou o seu primeiro álbum, Domingo, iniciando um percurso discográfico com mais de 30 álbuns de estúdio e nove gravados ao vivo, alguns com os seus antigos amigos e colegas.
Em 57 anos de carreira, a cantora brasileira marcou com sucessos como as canções Baby, Meu nome é Gal, Chuva de prata, Vapor barato, Pérola negra, Barato total e a Modinha para Gabriela, que marcou ainda a banda sonora da primeira telenovela brasileira estreada em Portugal, na RTP, em 1977, Gabriela.
Em janeiro de 2016, a edição brasileira da revista Rolling Stone destacou-a como “uma das maiores vozes do Brasil”, frisando que, na altura, continuava a renovar o seu público mesmo estando prestes a celebrar 50 anos de carreira. “É maravilhoso. Fico impressionada com a quantidade de jovens que conhecem meu trabalho, não somente o da fase tropicalista. Isso é espetacular! Eles costumam dizer no Twitter que cantoras brasileiras podem ser classificadas em ‘antes e depois da Gal Costa’. Acho que é pela riqueza do meu trabalho, pelas diferentes fases por que passei. E também pelo estilo do meu canto”, explicava nesse ano depois do destaque.
A morte já foi lamentada pelo recém-eleito Presidente brasileiro Lula da Silva. O futuro ocupante do Palácio do Planalto partilhou uma fotografia com a cantora onde escreveu: “Gal Costa foi uma das maiores cantoras do mundo, das nossas principais artistas a levar o nome e os sons do Brasil para todo o planeta”. “Seu talento, técnica e ousadia enriqueceu e renovou a nossa cultura, embalou e marcou a vida de milhões de brasileiros”.
A memória de um amigo
“Nos anos 70 e 80, produzi muitos espetáculos com artistas brasileiros em Portugal. Ela foi uma das primeiras artistas que trouxe. Lembro-me que estávamos em julho de 1980. Depois fomos convivendo ao longo dos anos”, lembrou José Nuno Martins, na altura empresário, realizador de televisão e produtor de concertos. Para si, este é um momento de perda pessoal grande. “Fui muito amigo dela, tivemos uma relação excecional!”, afirmou ao telefone com o i. Segundo o mesmo, Gal era uma pessoa discreta, reservada, muito firme nas suas convicções e por isso foi fácil trabalhar com ela. “Ela era de uma exigência notável, tinha um instrumento de voz verdadeiramente maravilhoso, completamente singular no meio em que se movia. Era um soprano que cantava tudo aquilo que a sensibilizasse. Cantava como se fosse uma menina e cantava de maneira inigualável, muito própria”, contou, acrescentando que, para além de uma grande instrumentista, a artista era uma boa pessoa.
Ao mesmo tempo que era reservada, Gal Costa era muito dada, tanto ao público, como no seu círculo de amigos. “Havia uma espécie de contradição. Ela tinha tudo isso e viveu sempre um bocadinho à frente do seu tempo”, sublinhou o produtor.
Conheceram-se em 1974, em São Paulo, enquanto assistiam a um outro concerto. Depois, acabaram por manter o contacto, até que José Nuno Martins a convidou para vir a Portugal. “Ela já cá tinha vindo em viagens pessoais, mas nunca enquanto artista. Foi um dos primeiros espetáculos de música brasileira no nosso país”, acrescentou. “Já tínhamos uma vivência grande entre amigos e foi numa base de confiança que começámos a trabalhar juntos. Eu era empresário e realizador de televisão. Na altura, nem foi preciso contrato”, confidencializou.
O que lhe fica mais na memória é a sua simplicidade. “Ela não tinha o ar de diva que devia ter. Para mim era um mistério… Com aquela voz e capacidade de interpretação, era uma pessoa tão simples, tão natural. Era de uma espontaneidade próxima daquilo que aparentava a cantar”, lembrou ainda, recordando que “para além de muita sensibilidade, Gal tinha uma técnica dificilmente atingível para uma pessoa normal”. “Os grandes artistas são assim, distinguem-se dos outros, e ela distinguia-se”, remata.
Gal Costa atuou regularmente em Portugal e a 17 de julho, encerrou a sua digressão pela Europa com dois concertos no país, sendo o último em Valença, no encerramento do novo Festival Contrasta. A cantora afirmava em 2017 que voltar era “matar saudades de um público e de um país onde se é feliz”. O seu avô era da ilha da Madeira, a avó era filha de portugueses.