Ulisses Correia e Silva, à semelhança do país que governa, sempre manteve uma relação estreita com Portugal. Este dirigente do Movimento para a Democracia (MpD) não só passou cá parte da sua juventude, a estudar Organização e Gestão de Empresas no Instituto Superior de Economia e Gestão (ISEG), com foi sob a sua tutela, como ministro das Finanças, que o valor do escudo cabo-verdiano passou a estar indexado ao euro. Depois, sempre teve na cabeça facilitar a mobilidade dentro da Comunidade dos Países de Língua Portuguesa (CPLP), tendo como aliado António Costa. «Quando eu era presidente da Câmara da Praia, ele era presidente da Câmara de Lisboa, logo na altura nós conversámos sobre isso», conta-nos Ulisses Correia e Silva. Que agora, aos 60 anos, trabalha em mais uma parceria com Portugal, procurando transformar a dívida de Cabo Verde em investimento climático, começando com dívida ao Tesouro português, como um projeto-piloto para mostrar a outros credores o que é possível fazer. No que toca à mobilidade, apesar de avisos da associação empresarial Cabo Verde Empresas, de que o recrutamento de cabo-verdianos por Portugal poderia afetar a produtividade, o primeiro-ministro aponta que «esses fluxos são naturais nos ilhéus». E que Cabo Verde sempre foi um país aberto, «não há forma de não ser como em qualquer arquipélago». Até porque «qualquer ilhéu se for fechado morre».
Cabo Verde pretende transformar a dívida pública num fundo para investimento climático. Quais são os credores mais essenciais que precisarão de convencer desta ideia? E quão recetivos se estão a mostrar?
Nós estamos a fazer uma abordagem que cremos ser muito mais pragmática. É impossível, do nosso ponto de vista realista, querer ir ter com todos os credores ao mesmo tempo. Os credores principais de Cabo Verde são o Banco Mundial, o BAD [Banco Africano de Desenvolvimento], o BADEA [Banco Árabe para o Desenvolvimento Económico em África] e temos alguns bilaterais. Por isso é que definimos como estratégia uma abordagem direta com Portugal relativa à dívida bilateral entre o Estado de Cabo Verde e o Tesouro português, que ronda os 140 milhões de euros, para podermos dar o primeiro passo. No sentido de podermos demonstrar que é possível, que há vontade política e pode haver resultados transformadores. O conceito é usar o espaço fiscal da dívida em investimentos que aumentem a resiliência e sustentabilidade da economia cabo-verdiana.
Poderia especificar quais seriam esses investimentos?
Falo da transição energética, da estratégia de água para a agricultara, em particular, dado que somos um país extremamente dependente de fenómenos meteorológicos e a seca está a globalizar-se também. Também do investimento na mobilidade elétrica, numa gestão sustentável dos recursos da pesca, somos muito de mar, e na execução da nossa estratégia para ação climática, dos compromissos internacionais. Tudo isto não na perspetiva de passar um cheque em branco, mas sim de termos metas e objetivos mensuráveis, que possam depois ser avaliados num prazo de cinco anos. Para verificar como Cabo Verde aumentou significativamente os níveis de energias renováveis, o que pressupõe a redução da nossa dependência, com impactos não só ambientais mas também económicos muito fortes. Que aumentámos a nossa capacidade de sustentabilidade na gestão da água, a eficiência tanto a nível energética como de água e reduzimos a frota de viaturas que se movem a combustíveis fósseis. E ainda a gestão dos nossos recursos pesqueiros num quadro de proteção dos oceanos. Se fecharmos este processo com Portugal, acho que os dois países estariam a dar uma resposta muito efetiva a discursos que têm sido produzidos com boas intenções mas até hoje não foram concretizados.
Da parte do Governo português já houve garantias concretas apresentadas? Ou esta ainda é uma ideia que está no ar, num ‘ainda vamos ver no que vai dar’?
Está muito mais do que no ar. Já começámos a trabalhar, há vontade política demonstrada pelo primeiro-ministro António Costa de abordar este assunto. Os dois ministros das Finanças têm estado a trabalhar e já há uma proposta concreta apresentada por Cabo Verde e que está em análise pelo ministério das Finanças de Portugal. E espero que possamos fechar aqui algo que pode ser extremamente interessante.
Vendo este foco na parceria com Portugal, o assunto trouxe-me à memória não só a questão da dívida climática, que todos os países desenvolvidos têm para com os países em desenvolvimento, mas também o debate das reparações devido ao processo colonial. Nunca surgiu no discurso, mas considera que Portugal, além dessa dívida climática, tem uma dívida histórica pelo colonialismo?
Não é essa a nossa abordagem. A história produziu aquilo que produziu, já lá vão vários séculos. E vir fazer reparações por fenómenos e acontecimentos históricos que aconteceram num contexto que não podemos alterar hoje não me parece que seja viável. A nossa abordagem é o mundo atual, o contexto atual, o que é que podemos fazer para juntos conseguirmos definir e elaborar boas parcerias. Para podermos mostrar que há exemplos que funcionam. E Portugal tem sido de facto pioneiro relativamente à abertura e procura de soluções de parcerias sustentáveis, é a nossa porta de entrada para a União Europeia. Concretizando este exercício, isso poderá provocar o que pretendemos, que é criar um contexto positivo relativamente aos outros credores, para verem que é possível ter resultados favoráveis para ambos os lados.
Pensei no assunto porque imagino que a dívida pública de Cabo Verde já venha dos primeiros tempos após a independência. E tendo em conta os altos níveis de dívida de Cabo Verde comparativamente à sua economia, de alguma maneira certamente Portugal tem uma responsabilidade relativamente recente dado a independência ter sido há tão pouco tempo, há décadas.
Mas não estamos a pensar numa perspetiva histórica, é uma perspetiva pragmática, do momento, daquilo que nós podemos desenvolver em conjunto.
Durante a pandemia houve tentativas conjuntas de vários países africanos de tentarem renegociar a sua dívida para conseguir fundos para enfrentar a covid-19. Os esforços foram liderados por governos como o da África do Sul, conseguiram alguma coisa mais ficaram aquém daquilo que queriam. Acha que Cabo Verde, com este projeto-piloto com Portugal, pode marcar a diferença em todo esse processo do continente africano lidar com os seus altos níveis de dívida?
A questão da dívida é extremamente complexa. Porque nós nunca podemos – nem é a nossa intenção – passar a ideia de que temos problemas no cumprimento da dívida, não é isso. Cabo Verde cumpre o seu serviço da dívida, temos condições para cumprir. Não estamos a procurar cheques em branco para zerar a dívida e dizer que vamos partir do zero, nada disso. Porque estou muito convencido de que essas abordagens dificilmente terão êxito. O processo é que nós temos de aumentar o nível de resiliência e fazer investimentos transformadores. E a dívida, particularmente o seu crescimento durante a pandemia, é um constrangimento. É um acréscimo que foi quase imposto a todos os países do mundo para poderem fazer face a encargos extraordinários. Então, havendo este compromisso global de aumentarmos todos o nível de resiliência, faz sentido aumentar esse espaço fiscal, para ser aplicado em investimentos reprodutivos para termos maior sustentabilidade futura. É nisso que temos estado a trabalhar. Este exemplo vindo de Cabo Verde e Portugal pode ser extremamente inspirador para soluções que possam funcionar e sejam pragmáticas.
Sei que para o sr. primeiro-ministro garantir essa imagem do cumprimento da dívida é muito importante. Até porque recentemente se mostrou furioso, digamos, devido a comentários da oposição, nomeadamente o PAICV [Partido Africano da Independência de Cabo Verde] relativamente ao orçamento de Estado e ao aumento da dívida pública. Mas compreende as críticas?
Não, não compreendo, são irresponsáveis. Lançar a ideia de um default no pagamento da dívida de Cabo Verde, quando nós temos uma divida sustentável, apesar do stock ser elevado, e temos níveis de risco considerados estáveis junto de instituições financeiras como Fundo Monetário Internacional, o Banco Mundial, o BAD, os grandes credores… Nunca esta questão foi colocada sequer. Vem um partido de oposição levantar este tema, claro que se não for rebatido fortemente isso deixa suspeições no ar. E essas coisas depois pagam-se caro a nível de confiança, aumentam o risco do país. Por isso é que tivemos o cuidado de perguntar à oposição se tem evidências. Não tem. Tem argumentos? Não tem. Tem alguns indícios do que possa levar Cabo Verde a entrar em default? Não tem. Daí eu classificar essas afirmações como irresponsáveis. A confiança num país não pode ser colocada em causa por interesses partidários ou de outra natureza.
Ainda assim, de onde é que vem esse stock da dívida tão alto?
O stock da dívida que nós temos tem sido constituído – tirando em 2020, que foi um ano atípico para todo o mundo – essencialmente para projetos que garantem uma maior sustentabilidade do país. Não só com infraestruturas importantes, mas também a nível da economia digital, de parques tecnológicos e data centers que estamos a construir, estão quase concluídos com financiamento através do BAD. Também a nível da saúde, investimos fortemente em equipamento médico hospitalar em todos os centros de saúde do país através de uma linha de crédito facultada pelo Governo belga. Estamos a investir fortemente no sistema de sanização de água para a agricultura, com reutilização de águas residuais, graças a uma linha de crédito da Hungria. Financiamentos do Banco Mundial estão virados sobretudo para as infraestruturas rodoviárias, que são muito importantes. também construímos um porto. São dívidas úteis, reprodutivas a nível social e económico. O stock da divida tenderá a aumentar, porque teremos necessidade de fazer investimentos, essas dívidas são concessionais. O país cresce, isso é que é mais importante, e depois nós temos um compromisso e responsabilidade para podermos gerir o défice orçamental dentro de parâmetros que não colocam em causa a sustentabilidade. E temos o suporte do FMI relativamente a esse problema. Temos consideração da dívida sem pôr em causa a coesão social e inclusão, para gerar mais crescimento. E não queremos gerar ruídos sobre a capacidade de sustentabilidade da dívida de Cabo Verde, porque isso depois tem consequências.
No que toca a crescimento, antes da pandemia Cabo Verde vinha-se a afirmar cada vez mais como um destino turístico de eleição, à semelhança de Portugal. Uma crise como a pandemia, que mostrou a vulnerabilidade de sociedades muito dedicadas ao setor dos serviços, não o fez repensar esse modelo focado no turismo e procurar fontes de receita fora dos serviços, que sejam mais resistentes no caso de grandes crises.
De certa forma, mesmo dentro do próprio turismo está agora com um programa muito forte de 200 milhões de euros para os próximos quatro anos, para termos um turismo mais diversificado, menos concentrado, fazer de cada ilha um destino turístico, com ofertas mais diferenciadas. Aproveitar mais o turismo de natureza, o ecoturismo, as potencialidades das montanhas, nas outras ilhas que não sejam apenas o Sal e Boavista. Resumindo, o turismo vai continuar a ser a maior atividade económica de Cabo Verde. Mas, ao mesmo tempo, estamos a investir na diversificação e um setor que tem um grande potencial é a economia marítima, a economia azul. Não só a nível das pescas, da indústria pesqueira e conserveira, mas também da aquacultura que se está a desenvolver agora, temos um grande investimento de uma empresa norueguesa de referência, a Nortuna, para a produção em aquacultura de atum para exportação, já no próximo ano poderão começar a explorar. É um grande potencial económico. Depois temos a economia digital, o investimento que estamos a fazer é para posicionarmos Cabo Verde como uma plataforma digital aqui na nossa região, para exportar serviços e atraí-los. Podemos produzir muita coisa à distância para o mercado global. Temos estado a investir fortemente nas competências, qualificações e empreendedorismo jovem nesse setor. Temos a própria indústria, com nichos muitos específicos, que já têm um impulso muito forte e desenvolver-se-ão nos próximos anos, na indústria farmacêutica, até na produção de vacinas. Não a vacina da covid-19, que já há muita produção e até stock que tem problemas de utilização, mas de outras vacinas. Essas competências existem, estamos a trabalhar num programa que tem apoio e financiamento do Banco Africano de Desenvolvimento Africano, dentro do compacto lusófono, para reforçar a capacidade da Inpharma, a empresa que intervém nessa área. E há outras áreas que podem ganhar maior projeção, como a industria agroalimentar. Mesmo a agricultura, queremos que seja uma agricultura muito mais moderna e produtiva, estamos a investir nisso. Chamamos-lhe uma ‘agricultura inteligente’, no sentido de ser uma agricultura nas condições de Cabo Verde, sabendo que temos pouca terra arável, pouca água, então temos de ser supereficientes, utilizar tecnologia. Israel conseguiu resolver esse problema, Cabo Verde vai conseguir também criar condições para a agricultura em zonas áridas. Até porque a pandemia mostrou algo que todo o mundo está a ver hoje. Que é preciso olhar mais para os recursos endógenos. E a guerra na Ucrânia está a dar outra lição, sobre o problema da dependência energética. Nós temos sol, vento, mar, não temos limite para produzir energias renováveis. Queremos reduzir essa dependência investindo nos recursos que Deus nos deu. E poderia dizer isso também recursos humanos, que são o maior recurso a ser desenvolvido. E ainda temos a estabilidade do país, a boa governação, a localização, a paz, tranquilidade, que são ativos importantes. Temos de valorizar esses recursos endógenos sem nos fecharmos, porque isso não é possível.
De facto, no que toca ao recurso da tranquilidade democrática, é algo que Cabo Verde tem mas infelizmente escasseia na região ocidental de África, que nos últimos anos tem tido grande instabilidade.
Sem dúvida. E isso deve ser valorizado cada vez mais. Não é algo que se possa encontrar nos supermercados [riso]. Esse é que é o grande problema.
Mencionou a questão da agricultura. Este ano, para variar um bocadinho, felizmente Cabo Verde está a ter um bom ano agrícola.
Sim, depois de secas severas desde 2017, este ano choveu bem. Teremos um ano agrícola entre o bom e o razoável, dependendo das regiões. Mas dá de facto um fôlego, não só na produção, mas também no pasto, no acesso a água. Mas sobretudo na relação que o cabo-verdiano desde há séculos com a chuva. Mesmo a estabilidade das pessoas, o nível de conforto e esperança muda muito com isso. A chuva em Cabo Verde tem um significado muito diferente da chuva noutros países.
Já no que toca à questão da mobilidade dentro da CPLP, sei que tem havido tentativas de Portugal ir recrutar condutores de autocarro e funcionários hoteleiros. Como é que esse processo se esta desenrolar? E para o Governo de Cabo Verde quão importante é essa diáspora?
Nós fomos protagonistas muito fortes no acordo de mobilidade da CPLP, que é uma realidade hoje. O que está a ser feito a nível laboral é uma das possibilidades que o acordo prevê, com acordos bilaterais. O que permite que aqueles que queiram ir trabalhar para Portugal tenham todas as garantias e direitos. Garantia de contrato de trabalho, direitos a nível de segurança social, na proteção na saúde. Todos esses direitos que um trabalhador português tem também um cabo-verdiano terá, desde que se desloque e seja contratado no quadro de um protocolo já celebrado entre o Governo cabo-verdiano e português, para que a imigração não só seja controlada, mas qualificada e garantindo direitos. E tem outra vertente muito importante, que é posicionar Cabo Verde enquanto hub de formação. Já há uma parceria com Portugal nesse sentido, de investirmos mais na formação de recursos humanos. Que podem servir Cabo Verde e servir o mundo. Nós sempre fomos um país aberto. Não há forma de não ser como em qualquer arquipélago. Vê-se isso nos Açores, na Madeira, nas Canárias. Qualquer ilhéu se for fechado morre. São economias abertas por natureza, têm que ter conectividade e mobilidade, não só no território nacional, a nível externo também. Esses fluxos são naturais nos ilhéus, por isso vemo-lo com tanta naturalidade, uns sairão, outros entrarão.
Sempre que falo com dirigentes da CPLP, um dos aspetos que me colocam sempre é uma certa descontentamento com o facto que, quando há discussões sobre mobilidade, Portugal é sempre o país mais reticente até pela pertença ao espaço Schengen. Estando a maioria dos países da CPLP a tentar abrir a formas de mobilidade e Portugal a retrair-se. Nota essa frustração?
Não. Havia, mas agora não há. Tem que se dar os devidos créditos a António Costa relativamente a esta matéria. Quando eu era presidente da Câmara da Praia, ele era presidente da Câmara de Lisboa, logo na altura nós conversámos sobre isso. E ele tinha de facto essa intenção, de se envolver no problema da mobilidade dentro do espaço lusófono. E está a concretizar hoje. Sem a vontade política de o fazer, ficando-se sempre nessa amarra das restrições da União Europeia, nunca se teria avançado. E avançou-se, mesmo sendo Portugal um país da União Europeia. Encontraram-se soluções que se adequam a isso. Possibilidade de mobilidade dentro do espaço da CPLP, autorização de residência no quadro das prerrogativas e liberdades que Portugal possui nessa matéria. Aconteceu de facto. Agora, para operacionalização há um instrumento adicional de mobilidade, em que os países podem fazer acordos bilateralmente, um a um, até que se complete o processo. No caso de Cabo Verde, avançámos com mobilidade completa, de um lado e do outro. Outros têm mobilidade reduzida, em função, por exemplo, de classes profissionais.