por João Cerqueira
Ao fim da tarde, Adão e Eva passeavam pelos jardins do Paraíso. O dia estava quente e não havia vento. Os seus pés descalços pisavam uma relva macia. À sua volta havia flores coloridas, árvores verdejantes e muitos animais. Ao passarem numa zona de árvores de fruto pararam e começaram a colher bananas, pêssegos e kiwis. Depois sentaram-se perto de um regato para os comer. Leõezinhos e cordeiros brincavam por perto. Uma girafa passou ao largo. Um casal de papagaios com penas vermelhas e azuis sobrevoou-os.
«Isto é realmente muito bonito», diz Adão.
«E não temos que nos esforçar para sobreviver», responde Eva.
«Sim, a nossa vida é maravilhosa. Passeamos, comemos, dormimos e fazemos amor três vezes por dia», diz Adão.
«Hoje ainda só fizemos uma», contrapõe Eva, insatisfeita.
«Calma, a vida não é só sexo. Olha em volta, Eva. Foi-nos concedida uma dádiva»
«É verdade. Deus foi nosso amigo, mas …»
«Mas o quê? De que te queixas? Não tens tudo aquilo de que precisas?», pergunta Adão.
Eva trinca um kiwi antes de responder e faz festas a um cordeiro. Por instantes, o único som que se houve é o da água a correr no regato.
«Tenho. Mas ando a refletir num assunto…»
«Refletir? O Paraíso não é sítio para refletir», diz Adão.
«Ao contrário destas bestas tão mansas, nós somos seres racionais. Fomos dotados do livre arbítrio. Por isso é natural que reflitamos de vez em quando», responde Eva.
«Se depois te doer a cabeça, não te queixes. Mas, afinal, em que andas a pensar?», pergunta Adão, irritado.
«Então ouve. Por que motivo é que Deus te criou primeiro e só depois me fez a mim retirando-te uma costela? Não te parece que isto é um ato de descriminação da mulher? Não deveríamos ter sido feitos ao mesmo tempo e com a mesma quantidade de barro?», pergunta Eva.
Adão fica perplexo. Enquanto pensa no que há de dizer come também um kiwi. Mas, quando um leãozinho se aproxima, dá-lhe um chuto.
«Eva, és tão complicada e tão ingrata. Deus deu-te uma vida feliz, sem problemas, e atreves-te a criticá-lo? O que é que tu queres mais? E, já agora, fala baixo que ele pode ouvir-te», diz Adão.
Eva fica ofendida.
«Adão, o meu problema é estar numa condição inferior à tua. Afinal, Deus poderia muito bem ter-me criado primeiro e depois a ti, não é? Não são as mulheres quem gera a vida?»
«Nós ainda não temos filhos», contrapõe Adão.
«Mas mesmo que só façamos amor uma vez por dia, acabaremos por os ter, muitos», diz Eva.
«Neste momento já não tenho vontade nenhuma», diz Adão, olhando para o meio das suas pernas.
«Não mudes de assunto. Eu quero discutir a igualdade entre os sexos e pouco me importa que Deus ouça ou não», grita Eva.
«Então achas que a mulher deve ser igual ao homem? Isso é absurdo. Olha para a natureza: em todas as espécies o macho é maior e mais forte do que a fêmea. Nunca poderão estar ao mesmo nível», grita também Adão.
«Podem. Tenta imaginar o futuro quando a Terra estiver cheia de seres humanos. Talvez nessa altura as mulheres se revoltem contra a sua condição inferior. Tenho a certeza que elas vão lutar pelos seus direitos e obter muitas conquistas», afirma Eva.
«Não vão nada porque isso é contrário às leis de Deus e da natureza. E, já agora, também imaginas no futuro homens a ter relações com homens e mulheres a juntarem-se com mulheres?», pergunta Adão com um esgar de nojo.
«E porque não? Se o que importa é o amor, então é irrelevante se os afetos se dão entre pessoas de sexo diferentes ou do mesmo sexo», responde Eva.
«Eu não quero viver nesse futuro. E se tivermos filhos serão educados à moda antiga. Só pode haver intimidades entre um homem e uma mulher, será a primeira lição que lhes ensinarei», diz Adão.
«Pois a primeira lição que eu ensinarei aos nossos filhos será a de que os irmãos se devem respeitar e permanecer unidos», responde Eva.
«E por que motivo haveriam os nossos filhos de se zangar se nada lhes faltará no Paraíso?», pergunta Adão.
«Não sei, mas Deus pode um dia decidir fechar o Paraíso e obrigar as pessoas a trabalhar. Se isso suceder, haverá decerto conflitos entre irmãos», diz Eva.
«Mais uma ideia absurda. Se Deus teve tanto trabalho para criar o Éden, por que iria encerrá-lo? Não vês que isto é o seu orgulho e que nós somos seus filhos? Um pai nunca abandona a sua família», responde Adão.
«Às vezes tenho um mau pressentimento… é uma coisa de mulher que tu não entendes», diz Eva.
«Ora aí está, acabas de me dar razão. As mulheres, com ou sem pressentimentos, são mesmo diferentes dos homens», diz Adão triunfante.
«Não percebeste nada, idiota. É claro que somos diferentes, mas devemos ter os mesmos direitos. A partir de agora tomaremos as decisões de forma democrática. Já ouviste falar em democracia?», pergunta Eva.
«Não, o que é isso?», questiona Adão.
«É a vontade da maioria», responde Eva.
«Maioria? Mas nós só somos dois, não pode haver uma maioria nunca. Ou achas também que as bestas devem ter os mesmos direitos que os homens?», replica Adão, trocista.
«Podemos decidir alternamente o que fazer. Se num dia tu escolhes fazer uma coisa, no dia seguinte serei eu a decidir o que iremos fazer. É justo, não é?», responde Eva.
«Ai sim? Pois então eu tenho a dizer que sexo três vezes ao dia é um excesso», diz Adão.
Eva fica desconcertada.
«Que se passa Adão? Achas que estou a ficar gorda?»
«Não querida, estás muito bem assim», diz Adão.
«Se calhar queres experimentar coisas novas… mas não sei se podemos, são as tais leis com as quais não concordo», diz Eva.
«Não é nada disso. Tu és uma grande amante e continuas muito atraente. Ando apenas um pouco cansado», diz Adão.
Eva suspira.
«Repousa, então».
Adão deita-se na relva e olha para o céu.
«Está a ver como as reflexões, a igualdade entre os sexos e a democracia só trazem problemas? Éramos tão felizes e acabamos a discutir. No Paraíso não precisamos dessas coisas para nada. Aceita a lei de Deus e serás feliz».
Eva deita-se também e acabam por adormecer. O sono deles é profundo. Quando o sol começa a nascer e os pássaros a cantar, Adão acorda, espreguiça-se um pouco e depois levanta-se. Olha então para Eva.
«Se eu não tomar medidas, ainda me vais arranjar muitos problemas minha linda», diz para consigo.
Eva começa também a acordar. Adão tem vontade de lhe dar um beijo, mas não o faz. Apenas lhe dá a mão para ela se erguer.
«Estou cheia de fome», diz Eva.
«O que te apetece comer?», pergunta Adão.
Eva sorri.
«Estás a ver como até gostas da democracia? Em vez de impores a tua vontade, pediste a minha opinião».
Adão torce o nariz.
«Isto não é democracia, é amor».
Eva abraça-o.
«O amor é uma forma de democracia íntima».
Adão sente o calor do corpo dela mas afasta-se. Até poderia fazer amor três vezes por dia, mas não em jejum.
«Bom, afinal o que queres comer?»
«Morangos, peras, bananas», diz Eva.
«Eu preferia outra coisa, mas vou fazer-te a vontade. Hoje não haverá discussões», diz Adão.
«És o homem da minha vida», diz Eva fazendo-lhe uma festa no rosto.
E caminham os dois pelos jardins do Paraíso colhendo frutos. De repente, Adão vê uma clareira com tulipas lilases e decide colher algumas para oferecer a Eva. O seu cabelo loiro ficava lindíssimo enfeitado com flores. Mas, quando lá chega, tem uma surpresa: diante de si estava a árvore do fruto proibido.
«Eva, anda cá ver isto».
Eva vem a correr e queda-se assombrada diante da macieira.
«É tão raro encontrá-las. São maravilhosas».
«Sim, mas não podemos comer os seus frutos», recorda Adão.
«Quem disse isso?», pergunta uma voz desconhecida.
Adão e Eva voltam-se e descobrem uma serpente com asas.
«Quem és tu?», pergunta Adão.
«Sou a serpente que fala e sou vossa amiga».
«No Paraíso todos os animais são nossos amigos», diz Eva.
«Talvez, mas eu sou o único que pode falar convosco», diz a serpente.
«Falar entre nós basta-nos. O que tens tu para nos dizer que não saibamos?», pergunta Adão.
«Tenho um segredo para vos contar», responde a serpente elevando-se um pouco no ar.
«Segredo? Qual segredo?», pergunta Eva excitada.
«O fruto proibido é o mais delicioso de todos», diz a serpente.
«Até pode ser, mas como tu própria dizes é proibido comê-lo», responde Adão.
«É verdade. Nós gostaríamos muito de o provar, mas temos de obedecer às leis mesmo que não concordemos com elas», confirma Eva.
Vendo que a primeira tentação não resultara, a serpente usa novos argumentos. A sua voz torna-se efeminada.
«Que mal faz comer uma maçã? Eva, já reparaste que estás a ficar gorda? Olha para esse traseiro. É das bananas que comes. As maçãs têm menos calorias, se as comesses estarias muito mais elegante e o Adão já faria amor contigo três vezes ao dia.»
Eva volta a cabeça tentando ver as suas nádegas.
A serpente insiste. «Os homens gostam de glúteos bem-feitos, Eva. Já pensaste por que é que o Adão faz amor contigo sempre na mesma posição?»
O visado intervém.
«O quê? Querias que imitássemos as bestas?»
«Deviam experimentar», diz a serpente meneando a língua.
«Isso é contra a lei. E quanto à Eva, ela está muito bem assim», diz Adão apalpando-lhe o rabo.
«Mas pode ainda ficar melhor, não é verdade? Com uma dieta de maçãs terá aquele corpo que sempre desejaste. Aquela silhueta que te aparece nos sonhos», responde a serpente.
Eva vira-se para Adão.
«É verdade, Adão? É verdade que gostarias que eu fosse mais magra e nunca tiveste coragem para me dizer?»
Adão fica embatucado.
«Não é bem assim… São apenas fantasias que tenho de vez em quando».
Eva ofende-se.
«Olha que tu também poderias ter um corpo mais musculado. Essa barriga já teve melhores dias».
«Que queres? Não há nada para fazer no Paraíso», defende-se Adão.
«Podias fazer uns abdominais de vez em quando», diz Eva.
«Comam maçãs. Comam maçãs e terão os corpos com que sempre sonharam», diz a serpente.
Eva agarra num pulso de Adão.
«Vamos tomar uma decisão democrática. Eu não volto a falar de igualdade entre os homens e as mulheres, mas a partir de agora passamos também a comer maçãs».
Adão tenta soltar-se.
«Eu sabia que as mulheres só se preocupavam com o corpo. Então abdicas dos teus direitos para ficar elegante?».
«Em democracia há que fazer cedências», responde Eva.
A serpente intervém.
«Ela não está abdicar de nada, pois quando ficar com o corpo que tu desejas acabarás a fazer-lhe todas as vontades. Repara como é um bom acordo para ambos: ela fica contente por emagrecer, tu obténs a mulher com que sonhavas e nunca mais voltam a discutir seja lá o que for».
Adão ainda não está convencido.
«Mas vamos decerto ser castigados por provar o fruto proibido».
A serpente dá uma gargalhada antes de responder.
«Pois então vou contar-vos o resto do segredo. No Paraíso não há punições. Ele vai ficar um bocado amuado, vai-vos ralhar, sim, mas no dia seguinte já nem se lembra do assunto. Afinal, os pássaros e as minhocas fartam-se de picar o fruto proibido e não lhes acontece nada».
«É verdade. Nunca tinha pensado nisso», diz Eva.
«Deus concede-vos ainda menos direitos do que aos animais», diz a serpente.
«Não é justo», continua Eva.
«Espera, não te precipites. Vamos pensar melhor e amanhã tomamos uma decisão», diz Adão.
Mas Eva volta-lhe as costas, avança para a árvore e arranca uma maçã.
«Não faças isso», grita Adão.
«Come-a Eva, é deliciosa», incita a serpente.
Eva fica a contemplar o fruto vermelho. Aproxima-o do nariz e sente-lhe o aroma perfumado. Depois fecha os olhos inebriada.
«Deita-a fora», diz Adão receoso de se aproximar.
«Prova-a e terás o maior gozo da tua vida», diz a serpente.
Eva aproxima o fruto da boca e passa-lhe a ponta da língua. Os seus mamilos dilatam-se. Ela solta um gemido. E então, incapaz de conter o desejo, trinca a maçã.
«Que delícia, nunca comi nada assim», diz Eva.
«E agora vais prová-la tu», incita a serpente.
Adão começa a tremer enquanto Eva caminha na sua direção com a maçã na mão.
«Come-a», diz-lhe.
«Não consigo», responde Adão.
«Parece que afinal as mulheres são superiores aos homens», diz Eva.
A serpente coloca-se ao lado deles.
«Eva, sabes o que tens de fazer, não sabes?»
Os olhos de Eva brilham. Ela morde o lábio e aperta as coxas.
«Agora já não podes voltar atrás», diz a serpente.
Então Eva beija apaixonadamente Adão, acariciando-lhe o corpo. Depois vira-se de costas para ele e coloca-se de gatas.
«Anda, estou a arder», diz-lhe com os cotovelos apoiados na relva e o pescoço voltado para ele.
Adão olha para Eva com a boca aberta, contrai os músculos e por fim atira-se ao seu rabo. Enquanto a possui impetuosamente, vai devorando a maçã como um animal esfaimado.
Eva grita como uma louca.
A serpente levanta voo dando gargalhadas.
Do céu irrompe um anjo com uma espada.