Portugal-Gana. O rapaz que saiu zangado de Inglaterra…

Está agora aliviado, Ronaldo. Liberto das amarras de uma situação que estava nitidamente a amargurá-lo. Ei-lo, saído zangado de Manchester, aliviado no Qatar para poder, hoje, ser o que sempre foi como capitão de Portugal.

DOHA – Regressemos, portanto, à fascinante aventura da notícia, como costumava dizer o meu saudoso camarada António de Sousa no momento de se sentar à máquina reclamando, volta e meia, que tinha encontrado, outra vez, um gato morto debaixo do capô do seu carro velho.

Daqui a bocado, pelas quatro da tarde em Lisboa, hora que não dará muito jeito aos que voltaram a trabalhar fora de casa, como mandou a pandemia por tanto tempo, Portugal entrará no Estádio 974 – na realidade chama-se Rass Abou Aboud, mas deram-lhe a alcunha numérica por causa da quantidade exata de contentores que foram utilizados na primeira fase da sua construção – para defrontar o Gana, uma equipa que anda longe da tradição categórica de jogadores como Kuffour, Mensah, Essien ou Yeboah (com Abedi Pele à frente de todos, naturalmente) –, mas que apresentará, sem dúvidas, um conjunto fisicamente poderoso, num estilo que não costuma ser simpático para a seleção nacional.

Não têm sido muito frequentes os embates da equipa dos cinco escudo azuis da Batalha de Ourique contra seleções provenientes daquela que se podia designar de África Negra – não sei se o termo já foi banido por alguma convenção controladora de definições raciais – que, como sabemos, difere grandemente do futebol dos países do Norte (Marrocos, Argélia, Tunísia, Egipto) por ser mais livre de compromissos táticos, mais selvagem, se também é permitida a expressão, mais entregue à natural apetência de deixar os jogadores fazerem o que lhes dá na gana, sem que tenha querido enfiar aqui um trocadilho bacoco. Claro que cada vez tem sido menos assim, o jogo-dos-números-de-telefone (4.3.3, 4.4.2, 3.5.2) também já invadiu todo o continente, o atual treinador, Otto Addo é de origens ganesas mas nasceu em Hamburgo e viveu sempre no futebol alemão como jogador – Borussia de Dortmund e Hamburgo –, e conta com um grupo de gente que joga por clubes de toda a Europa, desde o Leicester (Amartey) ao Brugge (Denis Odoi e Sowah) e do Ajax (Kudus) ao Sporting (Fatawu), passando pelo Chrystal Palace (Jordan Ayew, filho de Pele) e pelo Athletic de Bilbao (Iñaki Williams). Recentemente, num jogo de preparação para este Mundial (e para este Gana), Portugal venceu facilmente a Nigéria por 4-0, mas há que não aceitar esse resultado avultado como exemplo para hoje, embora o Gana tenha vindo a cair a pique na correlação de forças do futebol africano desde 2010 quando atingiu a final da Taça de África e se apresentou na fase final do Mundial do Brasil, tendo-lhe cabido, nem de propósito, defrontar em Brasília, a seleção então treinada por Paulo Bento. Vitória lusa por 2-1, com Cristiano Ronaldo a marcar, ele que está outra vez no centro das atenções, se é que em algum momento deixou de estar.

 

Solto!

Não sei que equipa Fernando Santos irá apresentar neste princípio de noite em Doha e, confesso, também não me vou deitar aqui a adivinhar. Houve um tempo em que era prática cada jornalista fazer, por assim dizer, a sua equipa provável, mas cada vez isso faz menos sentido, respeitando opiniões contrárias, e até, por graça, me fez lembrar os tempos em que António Oliveira, no seu estilo incontrolavelmente malandro, brincava de esconde-esconde com a malta da imprensa, surpreendendo até os próprios jogadores com onzes inverosímeis.

 De uma coisa, pelo menos, estou certo: Ronaldo vai entrar como titular com a braçadeira de capitão. E como não? Indisponível para o jogo com a Nigéria, está agora pronto para tudo, até para, como se viu, virar a sua vida do avesso, comprando uma guerra com o United e libertando-se de uma situação que, para ele e para os que o conhecem, era opressivamente negativa. É um homem livre. Está solto de amarras.

Continuo a chamar-lhe rapaz porque o recordo sempre ainda menino quando apareceu na seleção de Scolari nos tempos alegres de 2003/2004. É, se calhar, o único jogador deste Mundial sem contrato, o que não deixa de ser estimulante para fazer uma grande prova na Qatar. Não se pode, neste momento da sua carreira, dizer que tem algo a provar, mas sendo quem é, com o feitio que tem, não vai deixar de querer dar uma resposta às vozes que se vão juntando num murmúrio cada vez mais audível de que está acabado e já não marca golos como marcava. Vai ser em redor dele que o engenheiro vai montar o ataque português, veremos quem irá escolher ou para surgir num apoio mais próximo de Cristiano como avançado-centro, se preferindo alargar mais a frente com três unidades móveis. E, se Pepe está, como parece, em condições, também será em volta deste que montará a defesa a quatro, aliás como sublinhou numa entrevista recente, tem sempre feito. No meio não dispensa um jogador físico – gosta particularmente de William Carvalho, embora tenha sempre as opções de Palhinha (hmmm…, não me parece), Ruben Neves e Danilo. Ou seja, é nos dois mais experientes dos seus escolhidos que lançará a maior responsabilidade de um jogo que seria fundamental vencer. Depois as escolhas são muitas, o que pode parecer complicado para o decisor, mas por outro lado lhe abre um leque que quase todos os treinadores aqui presentes estarão prontos a invejar.

Pode virar-se o onze lusitano de pernas para o ar e abrir um conflito internacional sobre a titularidade de fulano ou de cicrano, mas não se discuta o robustíssimo talento da maioria dos 26 jogadores que viajaram para o Qatar. E o rapaz que saiu zangado de Inglaterra e se livrou das amarras que o prendiam pode agora pensar apenas em Portugal…