LUSAIL – Para a malta da minha geração, os que já entrámos na categoria de avós, A Minha Casinha é de muito, muito antes de aparecerem, sequer, os Xutos & Pontapés. Remonta à infância e aos filmes portugueses, a O Costa do Castelo, com o António Silva a fazer de Simplício Costa a deixar cair melaço no casaco de André (Curado Ribeiro) e, com isso, a dar consequência ao amor um bocado canastrão do rapaz endinheirado com a pobre Luisinha (Milú), tão trabalhadeira, e que morava na pensão da Dona Rita e do sr. Januário.
Num enredo que António Silva enche por inteiro, seja a chambrear as válvulas da radiotelefonia que oferece aos donos da pensão, seja às cautelas guardadas com todas as cautelas, a triste Milú solta um lamento de coração partido quando vê o seu namoro interrompido: “Que saudades que eu já tinha/Da minha alegre casinha/Tão modesta quanto eu…” Passou-se o tempo e a Casinha – versão Xutos & Pontapés – é, hoje em dia, uma espécie de hino nacional da seleção nacional, posto em marcha de cada vez que Portugal marca um golo, cantado pelos adeptos que marcharam até o Estádio de Lusail, às dezenas como sardinhas entalados nas carruagens (tão confortáveis!) do metropolitano que os traz do centro de Doha até mesmo aqui à porta. Foi António Melo (não o meu mano Tó Melo, o ator de truz), António Luís de Melo que compôs a música em 1943, com a letra a pertencer a João Silva Tavares, já lá vão quase 80 anos. Muitos talvez se lembrem melhor deste que foi um dos grandes compositores do teatro e do cinema portugueses se lhes disser que era o homem do piano do programa Museu do Cinema, da então única RTP, e apresentado por António Lopes Ribeiro que fazia questão de lhe recordar, teimosamente: “Ò Melo! Diz boa noite aos senhores!” Não seria preciso sublinhá-lo já que se tratava de um homem educadíssimo. Mas ficou cá encasquinado na memória. Essa é que é essa.
Espanholas e os Janas
Em redor do estádio, o ambiente vai para além dos portugueses e da sua casinha – que mania temos nós dos diminutivos, ele é a casinha, ele é o futebolzinho, ele é a musiquinha, ele é a cervejinha (que aqui anda escondida), e assim vai a vidinha –, estamos longe de ser uma força popular no Qatar apesar da falange indiana que segue a nossa equipa (até o meu bom e gordo amigo Dominic, lá de Colva, Goa, cá está com a família!), até agora argentinos, mexicanos e brasileiros têm recebido o apoio generalizado dos adeptos locais que vestem orgulhosamente as suas camisolas contrafeitas. Uma das atracções das feiras que se têm montado nas fan-zones, as Spanish Girls fazem furor: moças de pele inconfundivelmente escura, bem mais morenas do que qualquer sevilhana, vestem-se à moda de Sevilha, com todos aqueles folhos vermelho-berrante, e cantam vá lá saber-se o quê, que não se parece com nada do que cantam nas Curraleras de Utrera ou Las Romeras de la Puebla, ainda que tenham aquele ligeiro ritmo árabe que faz parte da alma da encantadora Sevilha. Gosto particularmente dos The Janas e imagino que devem andar a fumar nos bastidores além de sisha, aquele cachimbo de água que é como um vício das arábias. Ensaiam umas rocadas manhosas, que são aquilo que o meu velho companheiro António Florêncio chamaria de grande janaria, mas põem muita gente a mexer e abanar a cabeça enquanto vão fazendo horas para irem ocupar os seus lugares. Os portugueses instalaram-se atrás da baliza norte. Para lá deles começa o deserto que vai até Zubara, a partir do momento em que saímos desta cidade moderna carregada de arranha-céus esdrúxulos. Na frente fica a esperança. São em maior número, os uruguaios? Não. Estão no topo sul, num molho mais ou menos idêntico. Faltam 45 minutos para o jogo começar. A maior parte dos 90 mil lugares deste recinto impressionante, que não tem muitos ao seu nível na Europa, pormenor a pormenor, está vazia. Serão os emigrantes hindus, bengalis, paquistaneses a desempatar, escolhendo um dos lados, como geralmente fazem. Aqueles que muitos grotescos acusaram de serem pagos pelo seu apoio. Os nossos esperam por um golo lusitano. Abrirão as goelas e cantarão uma estrofe da Casinha. O António Melo morreu em 1975. Há 47 anos. Talvez os netos recebam finalmente algo que se veja em direitos de autor…