por Henrique Santos
Politólogo
Nunca na história dos mundiais da FIFA assistimos a uma tão cerrada bateria de críticas ao país anfitrião como contra o Qatar. As duas últimas semanas, então, foram um fartote! A FIFA atribuiu os Campeonatos de 2018 à Rússia e o de 2022 ao Qatar simultaneamente (que não era hábito), a 1 de dezembro de 2010, mas só agora tantas almas preocupadas acordaram!
Comecemos por afirmar, para que não existam dúvidas, que não pretendemos defender ou justificar a realidade da sociedade qatari. Queremos apenas analisar o muito que se tem dito e escrito sobre o tema, e denunciar que tantos pretendam ser monopolistas da verdade e politicamente corretos, com frases inflamadas, deixando claro, ao mesmo tempo, as suas incongruências ou, pior, a sua hipocrisia.
Em fevereiro do ano passado, o Guardian, jornal de esquerda inglês, denunciou movimentos sugestivos de menor transparência na atribuição das duas competições. Vulgo, duas escolhas compradas! Só bem depois da edição na Rússia claro! Como tal nada alterou, o mesmo Guardian, um jornal com reputação de sério, lançou e fomentou toda uma campanha centrada nas condições de vida e de trabalho dos trabalhadores migrantes que construíram os estádios do Qatar, em que teriam ocorrido mais de 6.500 acidentes mortais. Este número, afinal, é o do total de mortes de trabalhadores migrantes no Qatar nos dez anos entre 2011 e 2020. A insistência no erro só demonstra ter sido propositado.
O Governo do Qatar contabiliza três mortes em acidentes de trabalho nos estádios. A OIT, Organização Internacional do Trabalho, refere 50 mortes de migrantes no Qatar o ano passado. Números totalmente díspares, portanto. Obviamente, tivesse sido apenas uma única morte, já seria uma tragédia. Mas não basta ter fama de sério, é imperativo que não se minta deliberadamente aos seus ouvintes ou leitores! Já agora recordar que na construção da Ponte Vasco da Gama tivemos a lamentar 11 mortes.
Outra grande linha de crítica é centrada nas leis existentes naquele país sobre a homossexualidade. Estimulada pelo movimento LGBT das democracias liberais ocidentais. Mas, esperem! Onde foi o último Mundial de Futebol? Na Rússia, certo! Onde as leis anti-LGBT não diferem muito das do Qatar! Era eu que estava muito distraído ou esses agora críticos do Qatar ‘esqueceram-se‘ de fazer essa denúncia quando do Mundial da Rússia? Tanta incongruência, tanta hipocrisia! E as ‘corajosas’ seleções também se ‘esqueceram’ do tema na Rússia?
Mas no Qatar não há Estado de Direito, não há liberdade de imprensa, e portanto o Presidente da República e o primeiro-ministro não deviam lá ir para um evento desportivo e promocional de um país que desdenha e viola esses direitos fundamentais. Catarina Martins dixit. Mas… os nossos governantes não foram ao Mundial da Rússia em 2018? Ou a Rússia nessa altura vivia num Estado de Direito com liberdade de imprensa? Tanta incongruência, tanta hipocrisia! Só nos falta que os nossos dignitários, agora, inventem uma mentira piedosa para desistirem da viagem…
Já agora recordar que no Euro da nossa alegria em 2016, em França, foi proibida a venda de bebidas alcoólicas nos estádios, tal como hoje ainda acontece em todos os jogos da nossa Primeira Liga! E na espanhola, francesa, holandesa! Ah!
Mas no Qatar é que temos que criticar.
Continuemos coerentemente o raciocínio: Com tanto compatriota perturbado, é tempo de dizer aos benfiquistas que rejeitem a publicidade nas suas camisolas da Emirates, que é emirati! Aos sportinguistas que devolvam a verba da venda do Nuno Mendes e aos portistas a do Vitinha, já que a procedência é qatari! E ao Braga, que rejeite também a entrada de capital qatari na sua SAD! E, todos nós, deixemos de utilizar a eletricidade da EDP, já que a China detém mais de 20% do seu capital! Nunca pensaram também nisto? Ridículo, certo?
Mas não é só por cá que temos estas acesas e fúteis discussões: esta semana, a Presidente da Comissão Europeia, Ursula von der Leyen, declinou o convite para assistir à final de Doha. Sempre pronta a não desagradar à maioria de esquerda do Parlamento Europeu, assumiu mais esta atitude demagógica, depois de ter enviado um Vice-Presidente da Comissão Europeia à abertura! A mesma Ursula von der Leyen que, uma vez mais ‘obedecendo’ ao Parlamento Europeu, decidiu que não deveria haver um Pavilhão da União Europeia na Expo Dubai 2020, depois de estar presente na Expo Xangai!
Claro que há quem beneficie deste debate estéril! Enquanto se discute esta tema, não se debatem outros assuntos importantes para o futuro do país. Esquecemos a guerra, inflação, crise energética, taxas de juro, desemprego, estagnação económica, pobreza e fome… Criticar o Qatar, ir ou não ao Qatar, eis o que interessa discutir.
Por favor poupem-nos! Não ofendam mais a nossa inteligência! Numa sociedade pluralista e democrática, todos têm direito à sua opinião. Mas exige-se que sejam consequentes e coerentes, e não tenham, deliberada e propositadamente, dois pesos e duas medidas. A não ser assim, é pura hipocrisia!