Por Almeida Faria
Poeta, ensaísta, autor de peças de teatro e de libretos, de romances e narrativas juvenis, tradutor de muitas línguas, editor e redescobridor de autores mundiais, caminhante por campos e cidades de vários continentes, grande conhecedor de pintura flamenga e não só, generoso anfitrião, pensador de uma constante curiosidade, conversador de uma agilidade mental tão surpreendente como a agilidade física com que, aos oitenta anos, se deixou rolar, ladeira a baixo, por um prado inclinado, Hans Magnus Enzensberger era ‘O Magnus’ para a família e amigos. Nunca este nome próprio me pareceu mais apropriado. O alto nível da sua invenção verbal, o humor e esprit dideronesco da sua eloquência sempre alheia ao patético e ao solene davam aos interlocutores a sensação de ficarem mais espertos e despertos só por ouvi-lo.
Dois dedos de diálogo com ele eram uma festa da inteligência.
Conheci-o em 1969, era eu bolseiro do DAAD, instituição que convida artistas estrangeiros a trabalharem em Berlim, onde ele então morava. Na minha primeira ida a sua casa, na Frege Strasse, desafiou-me a ir a um encontro entre escritores suecos e alemães em Estocolmo. Impensável perder tal oportunidade. Num comboio tresandando a desconfiança e desinfetante, inspecionado em cada estação por polícias de metralhadora em punho, atravessei o pesadelo da antiga Alemanha (dita) Democrática. Em Rostock apanhei o ferry para Copenhaga e aí, num confortável comboio ‘capitalista’, cheguei à sonhada Estocolmo, onde assisti a depoimentos e disputas quer de celebridades como Peter Weiss (atacado na imprensa portuguesa por causa da sua peça anticolonialista sobre o Espantalho Lusitano), quer de discretos poetas como Tomas Tranströmer, futuro Prémio Nobel. Traduzi-o depois, ajudado pela minha tradutora sueca Marianne Sandels.
Logo que o 25 de Abril de 1974 o permitiu, propus à corajosa luso-dinamarquesa Snu Abecassis uma antologia poética de Enzensberger, ideia que ela aceitou sem hesitar. A edição da antologia (depressa esgotada) com o meu provocante título de Poemas Políticos foi pretexto para a sua vinda a Lisboa, onde debateu com poetas e prosadores no ‘verão quente’ de 1975. Nos anos oitenta passou semanas em Lisboa para escrever o capítulo sobre Portugal, incluído em 1987 no livro Ach Europa! logo publicado em França pela Gallimard. Várias dessas reportagens foram traduzidas em jornais europeus, mas os portugueses não terão apreciado o seu olhar irónico: nenhum jornal se interessou sequer pelo capítulo dedicado a Portugal, nem nenhuma editora quis publicar o livro inteiro. Mais tarde, em 1996, Enzensberger veio de novo a Lisboa para participar numa sessão da Casa Fernando Pessoa. Entre Lisboa, Nova Iorque, Amsterdão e Munique, onde passou a viver e de onde agora nos chega a difícil, inevitável notícia da sua morte, o nosso convívio prosseguiu durante mais de cinquenta anos, um meio século iluminado pela efervescência da sua inesgotável criatividade.
Como responsável pela coleção A Outra Biblioteca, Enzensberger publicou em 1988 dois romances do seu muito admirado Eça: O Primo Basílio e Alves & Companhia. Cito: «Este homem não encontrou em Portugal um crítico de si mais agudo e impiedoso do que ele mesmo». Parece o auto-retrato de Enzensberger em relação à Alemanha! Quando ao outro ícone das lusas letras, já em 1960 Pessoa aparecia no Museu da Poesia Moderna Mobilado por H.M. Enzensberger, poemas de 1910 a 1945 por ele considerados característicos da modernidade.
Um grande prosador, Péter Esterházy, dizia que, quando fosse crescido, queria ser Enzensberger. A mim basta-me a alegria de poder continuar a conviver com os seus mais de oitenta livros.