Irão. Até a família se virou contra o velho aiatola Khamenei

Já não são só jovens e curdos que se rebelam contra o regime, a ala moderada alinha cada vez mais. A própria irmã de Khamenei pediu que a Guarda Revolucionária depusesse as armas, mas esta promete aumentar a repressão. 

O regime iraniano parece demasiado entrincheirado, os manifestantes já perderam demasiado para recuar. É muito difícil antever o desfecho dos protestos pela morte de Mahsa Amini, que ganham um apoio cada vez mais amplo. Podem ter começado sobretudo entre a comunidade curda ou em campus universitários, mas expandiram-se e conseguiram paralisar boa parte do Irão com três dias de greves, recebendo aplausos até de dirigentes da ala moderada do regime, como o ex-Presidente Mohammad Khatami. Já o Supremo Líder, o aitola Ali Khamenei, depende cada vez mais da ferocidade da Guarda Revolucionária. E tem contra si a sua própria família. 

“Oponho-me às ações do meu irmão e expresso a minha simpatia por todas as mães que choram os crimes da República Islâmica”, declarou Badri Hosseini Khamenei, irmã do líder iraniano, chegando a apelidá-lo de déspota, numa carta divulgada por um dos seus filhos no Twitter, esta quarta-feira.

“Os mercenários e guardas revolucionários de Ali Khamenei deveriam depor as suas armas assim que possível e juntar-se ao povo antes que seja tarde demais”, apelou Badri. Entre os milhares de ativistas detidos nos protestos está a sua própria filha, Farideh Moradkhani, que o mês passado criticara o “regime assassino e mata-crianças” do seu tio, num vídeo visto pela Reuters. 

“O regime não é leal a nenhum dos seus princípios religiosos, nem conhece nenhumas regras que não sejam a força e a manutenção do poder”, acusou a engenheira, pouco antes de ser detida. Já o seu pai, Ali Moradkhani Arangeh, um influente clérigo xiita, veterano da Revolução Islâmica (1978-1979) e casado com a irmã de Khamenei, passara os seus últimos anos de vida preso ou perseguido por se atrever a criticar o cunhado.

Por mais que alguns observadores tendam a ver o Irão como sendo governado por um regime monolítico, “há uma luta de poder interna, entre fações”, recorda Maria do Céu Pinto, professora da universidade do Minho, especializada em assuntos do Médio Oriente, ao o i.

“Mas não creio muito que essa disputa leve a alterações substanciais do regime”, aponta Pinto. Apesar da coragem mostrada pela irmã de Khamenei ou por Khatami, “no Irão os moderados são cautelosos”, realça a professora. “Porque a linha moderada discorda do regime mas com uma margem relativamente limitada. É algo que não vai entrar em choque direto com o regime, dado que no fundo eles comungam dos mesmos valores, têm mais ou menos a mesma visão teocrática”.

Ainda assim, é notório que os protestos ganham um apelo cada vez mais abrangente, apesar da feroz repressão, com espancamentos, gás lacrimogéneo, balas de borracha e fogo real. Já não são movidos apenas pela revolta com a morte de Amini às mãos da infame polícia da moralidade, por uso incorreto do hijab. Entretanto ganharam outros jovens mártires, tendo as autoridades admitido que houve pelo menos trezentos mortes durante os protestos, suspeitando-se que o número real seja muito superior. E o martírio tem um poder particular na tradição xiita, alicerçada na memória do assassinato do imã Ali, filho adotivo do profeta, e em séculos de revolta contra regimes sunitas, maioritários no islão. 

A escala do descontentamento ficou clara com uma greve de três dias, que começou na segunda-feira. Vídeos mostraram ruas comerciais desertas em cidades como Teerão, Isfahan, Ilam, Kermanshah, Najafabad, Arak, Babol, ou Shiraz, com agentes a tentar obrigar lojistas a abrir os seus estabelecimentos.

É que o grito dos manifestantes, “mulheres, vida, liberdade”, que foi emprestados por grupos curdos, é uma “bela mensagem que mostra movimento rumo a um futuro melhor”, notou Khatami, citado pela agência noticiosa independente ISNA.

Já a imprensa estatal, que até fora proibida de o citar ou mostrar imagens suas, segundo a France Press, ignorou o ex-Presidente. Sendo que um dos seus protegidos, Mir-Hossein Mousavi, liderara os gigantescos protestos de 2009, o Movimento Verde. E outro seu aliado, o clérigo moderado Hassan Rohani, chegaria à presidência quatro anos depois, antes de ser substituído por Ebrahim Raisi, um dirigente da linha dura, muito próximo de Khamenei.

“A liberdade não deve ser espezinhada para manter a segurança”, declarou Khatami esta semana, pedindo ao regime que “estenda a mão” e “reconheça os aspetos errados da governação” face aos protestos. Mas Khamenei e os seus homens da Guarda Revolucionária prometem reforçar a repressão.

Aliás, o aiatola ainda quer ir mais longe, explicou esta quarta-feira, propondo combater a “fraqueza da cultura”, querendo uma “reconstrução revolucionária do sistema cultural do país”. No dia anterior, a sua Guarda Revolucionária apelava à justiça, em comunicado, que “não mostre misericórdia a amotinados, bandidos e terroristas”.

No Irão não há só um poder. De um lado há uma elite de clérigos xiitas, do outro a Guarda Revolucionária, que é um autêntico Estado dentro de um Estado. Esta organização, que responde diretamente ao Supremo Líder, conta com um poder militar comparável ou superior às forças armadas. Tendo tropas de elite próprias, redes de aliados entre comunidades xiitas por todo o Médio Oriente e até uma força aérea, que é responsável pelo programa de mísseis iraniano. Além de ter uma forte participação na economia do Irão.

Foi muito à boleia dos Guardas Revolucionários que Khamenei chegou ao poder, substituindo o aiatolá Ruhollah Khomeini. Se hoje pensamos no Supremo Líder sobretudo como clérigo, foi porque fez questão de cultivar essa imagem quando pareceu que tinha hipótese de subir ao trono, em 1989. Até então, era conhecido muito mais como político do que como religioso, servindo como vice-ministro da Defesa e fundando a Guarda Revolucionária. Depois disso, abandonou roupas mais vistosas e optou pelo manto simples dos clérigos, deixando de fumar cachimbo. As credenciais religiosas de Khamenei eram vistas com um certo desdém por alguns clérigos, como o seu cunhado, mas tinha a vantagem de poder usar um turbante preto, símbolo dos descendentes do profeta. Mas a sua base de poder manteve-se a mesma. E agora, aos 83 anos, o aiatola vê o sistema que montou fragilizado, numa altura em que há preocupação como o seu estado de saúde. Caso faleça, surgirão novas incertezas.

“Houve toda uma rede de interesses económicos que foi construída ao longo dos anos à volta dos Guardas Revolucionários, dos serviços secretos, da polícia”, salienta Maria do Céu Pinto. “Isso faz com que tenham um interesse vital em que o regime sobreviva. Esse núcleo duro tem um autêntico império, daí que ache difícil que ele vá cair, estão muito enraizados na sociedade. Tinha de haver uma autêntica revolução, com em 1968-1969”.