AL-RAYAAN – O Mundial afunilou-se. Já só restam seis equipas em prova, estou neste momento na bancada de imprensa do Estádio da Cidade da Educação de frente para mais uma desilusão brasileira, provocada pela Croácia que passou às meias-finais depois das grandes penalidades que surgiram na sequência de um empate (1-1) ao fim de 120 minutos. Logo à noite, do Argentina e Holanda, mais um regressará a casa, para que, nas próximas terça e quarta-feira se disputem os jogos que dão acesso à final, uma meta que para Portugal será extraordinária já que, por apenas duas vezes, em 1966 e em 2006, conseguiu atingir uma fase tão adiantada da competição. Depois da vitória revolucionária, chamemos-lhe assim, sobre a Suíça, e revolucionária porque o selecionador Fernando Santos decidiu atirar para o banco Cristiano Ronaldo, aquele jogador que todos nós estávamos convencidos que tinha a titularidade garantida por alguma espécie de direito de usucapião, uma certa euforia tomou conta dos adeptos portugueses que andam aqui pelo Qatar. Não são muitos, é natural, a vida é cara, o preço dos bilhetes começou agora a disparar até atingir valores proibitivos, a populaça lamenta-se do facto de, nos primeiros encontros, ter conseguido entradas baratas e esse bodo aos pobres ter terminado abruptamente. Enfim, um Campeonato do Mundo é, provavelmente, o maior negócio do planeta em termos de bilhética, ultrapassando mesmo os Jogos Olímpicos, e deste já restam apenas mais seis jogos quando abrir as páginas do seu jornal.
É de certa forma inconsciente encarar Marrocos como um adversário agradável, mesmo após aquela vitória supimpa de Portugal perante a Suíça, em Lusail, por números muito raros de uma seleção nacional em fases finais: 6-1. Primeiro porque, seria capaz de apostar singelo contra dobrado, como nos livros do Tom Mix, que nenhuma outra equipa se condenará tão bovinamente a ser talhada pelo cachaço como aquele grupo de suíços que deram a sensação de que não faziam a mínima ideia do que estavam ali a fazer. Desculpou-se o seu treinador, Murat Yakin, que um vírus tinha atingido muitos dos seus jogadores e que, por causa disso, não conseguiu tirar rendimento deles. Pode soar a desculpa, mas a verdade é que um pouco por todo o lado o Qatar está a ser invadido por vírus das mais diversas espécies e parece que usam as instalações de ar condicionado (uma praga!, uma praga!) à moda de autoestradas, raios os parta! É, também, de certa forma indecente atribuir os méritos dessa inédita goleada ao facto de Ronaldo não ter sido titular. Não vale a pena bater mais no ceguinho, o capitão da seleção bem procura lutar contra os efeitos do tempo e contra os estragos que ele provocou na sua estrutura física, mas o tempo é tão insensível como irreversível e nem o Tony de Matos conseguiu que ele voltasse para trás. Claro que depois dos três golos marcados, dificilmente Gonçalo Ramos não será titular hoje, pelas 15h de Lisboa, no Estádio de Al Thumama. Por mim ficaria espantado e até desiludido. Agarrou a oportunidade com uma classe notável. Merece mais.
Marrocos híper ativo
Perguntem-me sobre as grandes individualidades da seleção marroquina e não serei capaz de as distinguir no meio de um futebol excitado, híper ativo, e movido por um fanatismo patriótico vertiginoso. Claro que há Zyiech (Chelsea), Hakimi (Paris Saint-Germain) ou Amrabat (Fiorentina), mas é seguramente a forma como se movimentam coletivamente que se torna perigosa para os seus adversários já que parecem dispostos a correrem e correrem e correrem até ficarem com os bofes de fora e as línguas dependuradas até aos joelhos. Não tenho dúvidas que vão exigir muito da equipa de Fernando Santos tem muitos e bons jogadores para vencer Marrocos, sobretudo do ponto de vista físico, e que o ritmo quase de passeio assumido pelos portugueses enquanto ultrapassavam os Alpes Suíços não vai ter lugar frente aos Leões do Atlas. Além disso, a partir da última terça-feira, foi fácil perceber na longa madrugada das ruas de Doha e na enorme festa que teve lugar no Souq-Waqif, o grande mercado da cidade, como sauditas, tunisinos e qataris (ou paquistaneses e bengalis por eles) se uniram numa comovente frente árabe, elegendo a seleção marroquina como a representante de todos os povos da região, predispondo-se a levá-la ao colo até ao mais longe que for possível. Que Portugal é melhor e tem melhores jogadores, nem discuto. Mas também era assim em 1986, em Guadalajara, e sofremos aquela derrota absurda e incompreensível face aos marroquinos (1-3), num momento em que a equipa portuguesa se desfazia pelas costuras ao mesmo tempo que se barricava numa farronca no mínimo zebroide. Com aquele seu exagero tão próprio que dava à sua prosa um toque inconfundível de humor, Nelson Rodrigues chamou à derrota do Brasil com o Uruguai no Maracanã em 1950 a «Hiroxima do Futebol Brasileiro». Não custa, por isso, considerar o fracasso lusitano do dia 11 de junho, no Estádio Jalisco, como o Alcácer-Quibir do futebol português. E, como escreveu um dia o meu querido Manuel Alegre: «Não mais Alcácer Quibir/É preciso voltar a ter uma raiz/Um chão para lavrar/Um chão para florir». Talvez Portugal seja capaz de voltar a florir hoje mesmo!