«Fiz o primeiro internato em Santarém, depois mudei para Leiria e fui para Ourém. Estive no privado em Viseu. Desvinculei-me porque não estava satisfeito com as condições. Entretanto, tivemos esta última crise e limitou-nos muito os orçamentos no privado. Então, reingressei para fazer uma especialidade daquela em que eu estava. Era Medicina Interna. Acho que houve uma deterioração marcada: como somos funcionários públicos, não temos aumentos desde 2009», começa por desabafar um médico de 39 anos que pede o anonimato e que ainda não abandonou o Serviço Nacional de Saúde (SNS), mas está a pensar fazê-lo.
«Tivemos cortes e nunca tivemos redução do horário de trabalho. Agora, só existem as 40 horas. A enfermagem passa para 35 e nós não. E o vencimento é exatamente o mesmo, perdemos poder de compra. Paralelamente a isto, deixámos de ter carreira. Podia progredir e isso aumentava o meu orçamento. Agora é uma ficção. Os concursos nunca abrem e nunca chegam a conclusões. Se ouvirem aquilo que dizemos, podem mudar. Por este caminho, caminhamos direitinhos para o abismo. Aquilo que me prende é o sentimento de missão», assume, explicando que trabalhar no setor público é tudo menos recompensador em termos monetários e acrescentando que tanto ele como os colegas são «maltratados» naquilo que diz respeito às condições laborais.
«Neste momento, tenho 1600 utentes a meu cargo. O meu número não é dos mais elevados. Os meus colegas costumam ter mais de 1700. Tenho de fazer tudo e mais alguma coisa menos ter tempo para os doentes», sublinha o clínico, admitindo que há doentes que devia ter visto há seis meses ou mais tempo.
«Consigo ir gerindo a minha vida, mas somos dois médicos e fazemos os dois privado além do público. Neste momento, por semana, faço umas dez horas no privado. Lisboa e Vale do Tejo tem um problema em fixar médicos porque cria muito pouca atratividade para reter profissionais», diz, desabafando que no centro de saúde onde dá consultas chega a ter colegas que trabalham durante um ou dois dias e vão-se embora.
«Sinto-me completamente subvalorizado no SNS. As pessoas entendem que quando pagam pelos serviços, é muito mais importante do que quando não pagam. Se eu der um tratamento caro a um doente, ele cumpre. Respeitam-me mais no privado. Temos uma formação excelente, a nível de faculdade e especialidade, por isso é que querem contratar-nos noutros países. Eu e a minha esposa estivemos para sair do país. Se não fossem as nossas filhas, faríamos parte das estatísticas. Os problemas estavam completamente encobertos. A manta já não cobria os pés e ainda esticámos para mais um lado», frisa, indo ao encontro da perspetiva de Jorge Roque da Cunha, secretário-geral do Sindicato Independente dos Médicos (SIM) que reflete acerca das rescisões e demissões, dois fenómenos que não são tão recentes quanto se possa pensar.
«Esse grito de alerta que os médicos têm dado é ignorado. O Ministro da Saúde conhece esses dados e deviam ter sido criadas medidas para evitar mais saídas do SNS e para promover a renovação de gerações. Quando se abre um concurso para recém-especialistas, cerca de metade das vagas ficam por ocupar. Essa discrepância vai aumentando progressivamente a necessidade de médicos no SNS», começa por declarar o médico de família na Unidade de Saúde Familiar (USF) da Travessa da Saúde, em Camarate, no concelho de Loures.
«Daí existirem quase 1 milhão e 500 mil portugueses sem médico de família. No Algarve, até contratam médicos que não estão inscritos na Ordem. Tudo isto é extremamente preocupante. Este ano, estamos a ter mais do dobro de sócios que nos comunicam que deixaram o SNS e, com isso, mudam a qualidade de sócio e, portanto, tudo isto devia fazer com que o Governo visse este alerta vermelho!», exclama, não compreendendo como é que os poderes públicos continuam sem tomar decisões.
«Nunca como agora houve tantos portugueses com seguros de saúde, a gastar dinheiro no privado e grupos privados a ganharem tanto. Pode dizer-se que esta atitude de expectativa e inação do Governo tem permitido que os grupos privados tenham crescido ao nível dos dois dígitos. No SNS estão cerca de 20 mil médicos, mas quantos estão a meio tempo? E a 40 horas? E a 35 horas?», questiona, visivelmente desiludido com a atuação da tutela.