por Manuel Pereira Ramos
Jornalista
São cada vez maiores as dificuldades dos jovens e até dos que já o não são tanto para, chegado o momento de quererem ou necessitarem ser independentes, o poderem fazer ao não encontrar uma habitação digna e a um preço que não lhes coma quase todo o ordenado, não os hipoteque para o resto da existência ou, simplesmente, não os prive de poderem desfrutar algo o presente e planificar com tranquilidade o futuro. Em maior ou menor escala o problema sempre existiu, o lamentável é que a sociedade em que vivemos e que em muitos aspetos progrediu, não tenha sido capaz de encontrar soluções para uma questão tão básica da vida dos cidadãos.
Nos meus tempos de estudante, para os que vínhamos da província e não tínhamos meios para poder alugar uma casa ou compartilhar um apartamento, a única solução era alugar um quarto para nele viver a sós ou, para sair mais barato, em companhia de algum conhecido na mesma situação.
De facto, não era difícil encontrar quem estivesse disposto a permitir a entrada de um estranho em sua casa a troco de um dinheiro que era uma boa ajuda para o equilíbrio do orçamento familiar. Nesse mundo havia de tudo, com sorte podíamos encontrar gente humilde que fazia o que podia para satisfazer o recém-chegado, mas também havia o risco de entrarmos num verdadeiro inferno, algo que nos obrigava a andar sempre de mala ás costas à procura doutro lugar para viver, ao princípio sempre parecia que a mudança tinha sido para melhor, mas muitas vezes acontecia que, pouco tempo depois, a conclusão era que o novo destino era tão mau ou pior que o anterior. Mas, o que nunca falhava era ver como todo o peso da casa caía sobre os ombros da mulher do casal, era ela quem limpava, arrumava, passava, fazia a comida, um trabalho extenuante de horas a fio sem descanso, um sacrifício que, mais de uma vez, vi ser recompensado por duras reprimendas a altos gritos e até mesmo agressões físicas por parte do marido omnipotente e com mau vinho, era a violência doméstica em todo o seu esplendor.
Nesse deambular de quarto em quarto tive de viver experiências de quase toda a espécie, a mais horrível o encontro com o corpo do avô da família que, cansado daquela vida, decidiu pendurar-se pelo pescoço na casa de banho. Mais caricato foi o que me sucedeu uma vez que fui de férias: deixei paga a renda, mas tive de regressar a meio do mês, ao meter á chave à porta encontrei o quarto ocupado por uma numerosa família africana, a dona, que tinha feito um duplo aluguer, pediu-me mil desculpas assegurando-me que uma hora mais tarde já não haveria ninguém lá dentro, mas o tempo foi passando, não saíam e acabei por passar a noite à espera num banco do Jardim da Parada. Finalmente, a meio da manhã lá consegui entrar, exausto deitei-me na cama que, maltratada pelos anteriores usuários, ruiu e caiu aos bocados, a minha roupa também tinha desaparecido.
Com diminutas dimensões e inseridos num ambiente muitas vezes pouco recomendável, os quartos alugados não eram, certamente, o sitio mais indicado para estudar, havia que encontrar uma solução alternativa e foram os cafés os que, generosamente, nos abriram as suas portas a troco de quase nada, neles nos reunimos os colegas do mesmo curso, estudávamos juntos, ajudávamo-nos uns aos outros e lá ficávamos, horas e horas, sem consumir mais que uma bica cheia, no melhor dos casos, quando havia um pouco mais de dinheiro, dávamo-nos ao luxo de, antes do regresso a casa, tomar meia torrada e um copo de leite. É certo que, cafés haviam que à entrada, punham o aviso de ‘proibido estudar’, não por embirrar, mas porque, sendo pequenos, o negócio dos estudantes era, para eles, ruinoso. Nos maiores, como o Chiado, o Martinho, a Mexicana e tantos outros espalhados pela cidade sempre nos sentíamos como em casa, nunca agradeceremos suficientemente aos donos dos cafés a sua enorme generosidade, fundamental para que muitos tenhamos podido terminar as nossas licenciaturas e, com elas, mudar para sempre as nossas vidas.
Em Campo de Ourique estava e ainda está, o Canas, o último andar era, depois do jantar, uma autêntica sala de estudo. Todos andávamos em Económicas, mas, os que tínhamos emprego, só assistíamos ás aulas práticas no começo da manhã ficando nós sem saber as matérias que eram dadas nas teóricas e das quais iríamos ser examinados. Felizmente, sempre aparecia por lá o Aníbal com os apontamentos que, entre todos, copiávamos à mão. Uma noite, além dos cadernos, ele chegou com uma ideia na cabeça: estava convencido que tinha encontrado a fórmula matemática para ganhar o totobola e queria compartilhar connosco a felicidade de virmos todos a ficar ricos. Arranjou-se um financiador porque era preciso fazer muitas apostas, encontrámos tempo para preencher centenas de boletins, mas, depois de durante algumas semanas termos ficado a um passo do objetivo, tivemos de resignar-nos á dura realidade de que, não seria por aí, que conseguiríamos a nossa independência financeira. Como apostador o nosso amigo não teve êxito na vida, sim o encontraria por outros caminhos que o levaram a ser, nada menos, que primeiro-ministro e Presidente da República do nosso país.