E Maradona disse: “Toma o meu pé esquerdo e usa-o até seres Deus…”

A Argentina é a primeira finalista deste Campeonato do Mundo ao rasgar em pedaços uma defesa da Croácia que parecia feita de papel vegetal (3-0). E Messi voltou a ser o melhor jogador do Mundo.

LUSAIL– Em momentos como este de ontem, em Lusail, com a final do Campeonato do Mundo ao estender da mão, ficamos sempre na expectativa de quem será o primeiro dos opositores a deixar-se invadir por esse nevoeiro do medo que toma conta dos homens até às entranhas e até às profundezas das suas almas de mortais simples e banais. Cá do alto, do lugar onde escrevo, olho para eles e espero. Haverá um gesto, um movimento, um de repente que desencadeie os acontecimentos para já parados, inexistentes. É percetível que estão presos a uma falsa sensação de segurança, como quem diz, se não nos mexermos eles também não se mexem e ficaremos assim, frente a frente, até que um ente qualquer, desses entes que gostam de decidir resultados de jogos de futebol, puxe o cordel e desate o zero-a-zero. Chamem-lhe rasgo, se quiserem. Ou impaciência, que também serve. Ou Duende, como Garcia Lorca: esse algo que não se explica e que nos sobe pelo corpo vindo da planta dos pés e para o qual não há sequer espaço na filosofia. Às vezes basta apenas um segundo. Ou metade de um segundo. Ou metade da metade de um segundo. Um desvio de olhar porque, até agora, os vinte e dois jogadores que se movimentam lentamente sobre o relvado têm os olhos fixados nos olhos uns dos outros. Como se soubessem que basta a mais pequena das distrações para que se faça ouvir a trombeta do apocalipse enviando os seus cavaleiros para uma derrota até à aniquilação. E ela está quase a ser soprada. Estejam atentos, estejam muito atentos. Na arena de Lusail as lágrimas dos croatas empaparão a relva e ficarão como testemunha de que há, por aqui, ainda uma alma com um pé esquerdo mais mágico do que todos os milagres da Nossa Senhora do Sorriso.

Onde está escondido o segredo do desequilíbrio nesta mansidão que nos aborrece, que nos amolenta, que nos faz divagar o pensamento por outro lugar que não seja o deste estádio que tem lugar para 90 mil pessoas? Está tudo firme, preso. Até esses Duendes de Lorca que são Modric e Messi e dos quais se espera que brotem os sons negros do mistério. Não consigo ver a superfície dos seus olhos, mas acredito que serão os únicos que não tenham, em redor da íris, aquele traço amarelo e inconfundível que vive nas notas da flauta de Pã. Já tiveram, cada um deles, direito à sua final de um Mundial. Perderam. Um deles não repetirá esse momento de alegria primeiro e de tristeza depois. São como um jogo dentro do jogo. Modric homem de mais espaços, solícito a oferecê-los, capaz de os inventar para os companheiros; Messi sobretudo dono dos seus próprios espaços, provocando-os, tirando gente que os ocupa sem lhe ter pedido autorização para isso. A noite será dele.

 

Rasgado

Até à meia-hora as balizas podiam ter sido arrumadas numa das arrecadações do estádio porque não estavam ali a fazer nada. Depois, a defesa da Croácia rasgou-se com a facilidade com que um garoto desfaz uma folha de papel vegetal. Afinal bastava correr, bastava correr muito e correr depressa. Quem diria que os croatas, lá atrás, não tinham nem um pingo de reflexos quando os argentinos decidissem deixá-los para trás, definitivamente para trás.

Penalti! Mas quem o discute? Só o mais bronco dos incréus.

33 minutos. Número quase cabalístico. O sangue não ferve nas veias de Messi. Tem um anjo pousado no seu ombro quando se dirige para a bola e chuta com o pé esquerdo abençoado por Maradona que viu nele, um dia, o mais fiel dos seus discípulos. É golo.

Toda a Croácia treme de alto abaixo das suas traves mestras. Há gente que se perde em campo, há números que fogem às suas posições, um vento de terror abana uma equipa fisicamente potente e que não tem por hábito desmanchar-se. Mas é isso mesmo que acontece quando Julián Álvarez corre e corre e corre. A bola vai na sua frente, a princípio escorreita, obediente, em seguida trapalhona, ressaltando em canelas e joelhos até sobrar para o remate definitivo. Golo. Golo outra vez.

 “Vamo vamo Arrentina! Vamo vamo a ganar/Que esa barra no te deja/No te deja de alentar!” – o J transforma-se num R naquele cantar porteño que o Rio de La Plata, porta de entrada e de saída dessa cidade mágica que é Buenos Aires e que nos ensina, tal como Federico García, que a poesia existe em todas as coisas, no que é feio, no que é formoso, no que é emocionantemente belo e no que é repugnantemente pavoroso. Ele está aí, o Duende. Sim, também foi em Buenos Aires que Lorca falou pela primeira vez sobre o Duende tocando na ferida de gentes magoadas até à fronteira das artérias. O Duende que baila um tango solitário pela direita sempre com o pé esquerdo, o Duende que faria a velha cigana La Malena exclamar como no dia em que ouviu Brailowski ticar uma partitura de Bach: “Ole! Eso tiene Duende!” Oferece  o golo a Àlvarez – 3-0! Com ponto de exclamação e tudo, pois claro!, como querem vocês que não exclame o lance de Lionel Andrés Messi Cuccittini que está aí à beirinha, se MBappé deixar, de ser eleito o melhor jogador deste Mundial ineditamente árabe?  69 minutos. Mas, que diabo!, não houve sequer tempo para que os croatas soubessem o que era o medo. Esfumados numa sombra clara da qual não somos sequer capazes de distinguir a silhueta. Não, não houve Croácia em Lusail. E já não há também Modric, envolvido na desorganização provocada por adversários agora só alma, só grinta, furiosos exploradores dos espaços que se abrem na sua frente como gigantescas Patagónias desertas e sem horizontes.

O estádio brada por inteiro. A Argentina, desde o primeiro dia adotada pelas gentes do Qatar, indianos, bengalis, paquistaneses, filipinos, povos que quiseram vestir a camisola das riscas celestes e brancas, viaja aos ombros dos gritos e dos cantares. Modric sai por entre aplausos. Este jogo não é dele, não é justo submete-lo ao sofrimento de uma derrota tão inesperada como humilhante. Este é o jogo de Messi, o eterno. Messi a quem Maradona emprestou o pé esquerdo e disse: “Aproveita niño, depois devolves-mo quando já não precisares dele!” Ah! Mas este Mundial ainda precisa. Ele que o guarde até domingo.