O Botequim da Natália

por Nélson Mateus e Alice Vieira

Querida avó,
Fui assistir, recentemente, a um concerto promovido pela Sociedade Portuguesa de Autores que assinalou os 100 anos de nascimento de Natália Correia.

Foi um concerto inteiramente alicerçado na poesia de Natália Correia, nas suas mais variadas vertentes, com conceção artística e musical de Renato Júnior. O concerto irá passar no próximo ano na RTP, e irá fazer parte das, muitas, celebrações que assinalam o centenário do seu nascimento.

Ana Bacalhau, Áurea, Amélia Muge, Elisa Rodrigues, Katia Guerreiro, Mafalda Veiga, Patrícia Antunes, Patrícia Silveira, Maria João, Rita Redshoes, Sofia Escobar e Viviane, são os nomes que irão estar em disco e estiveram no palco da Aula Magna com este belo projeto.

Apesar de ter morrido há 30 anos, tenho imensas memórias de a ver na televisão, ainda a preto e branco, com a sua forma acutilante de se expressar. Um autêntico vulcão literário!

No dia em que te escrevo esta carta, assinala-se o Dia Internacional para a Eliminação da Violência Contra as Mulheres. Uma data que visa alertar a sociedade para os vários casos de violência contra as mulheres.

Natália Correia sempre foi uma mulher de causas. A urgência de um Mundo mais justo sempre lhe correu nas veias, assim como a igualdade e o direito das mulheres. Recordo-me perfeitamente de a ver no Parlamento a defender, com unhas e dentes, as causas pelas quais lutava.

Foi poeta (não queria ser chamada de “poetisa”, porque considerava a poesia assexuada).

Sempre que posso, gosto de ir ao “Botequim da Natália”, que fica no Largo da Graça, em Lisboa.

Fico a imaginar como seriam as longas horas de tertúlias nos anos de 1970 e 1980, neste espaço que era ponto de encontro (e de debate) entre algumas das personalidades mais relevantes das artes e letras portuguesas. Mas a maior delas seria sem sobras de dúvida a anfitriã.

Bjs

 

Querido neto,
Embora admirando-a muito, pelas posições que sempre tomou, a Natália Correia não é das pessoas que fazem parte do rol dos meus amigos. Era lindíssima em nova – antes do bócio a atacar – e lembro-me dela nessa altura a intervir num colóquio num teatro de Lisboa. Quando se levantava da cadeira, parecia que ia voar!

O António Vitorino de Almeida era muito amigo dela. Lembro-me de ele me contar que um dia a convidou para ir passar uns dias à casa que ele tinha em Moledo. Claro que o convite incluía sempre o Dórdio.

E, quando lá chegaram, o Vitorino de Almeida, que não tinha papas na língua, perguntou-lhe:

«A Natália dorme com o Dórdio? Preciso de saber quantos quartos arranjo».

E ela:

«Habitualmente não, mas se lhe der jeito, posso dormir».

Era uma mulher de extremos! Ia com a maior das facilidades da gargalhada à cólera.

Ninguém ficou indiferente quando, em 1982, eras tu uma criança, num debate parlamentar, se debatia a despenalização do aborto. Um deputado do CDS, argumentou: «O acto sexual é para ter filhos».

Natália Correia (na altura deputada do PS) subiu à tribuna para responder com um poema muito original “Truca-truca”, que entrou para a história. As gargalhadas obrigaram à interrupção dos trabalhos.

Sempre a recordo como “Insubmissa”.

Precisamente o nome que foi dado a um documentário que vi, recentemente, na RTP 2.

O documentário de Joaquim Vieira reconstrói o ambiente desse bar, ao mesmo tempo que recolhe o testemunho de um leque variado de figuras que conheceram Natália Correia e que com ela privaram nas mais diversas circunstâncias.

Nunca fui ao “Botequim”, imagina! Acho que foi a Helena Roseta que ficou à frente dele quando ela morreu.

Quando for a Lisboa podemos combinar uma ida ao Botequim da Natália, embora hoje em dia não deva ter nada a ver com o de outrora.

Bjs