Depois de Ladrões de Bicicletas, de Vittorio de Sica, O Mundo a Seus Pés, de Orson Welles, e Vertigo, A Mulher que Viveu Duas Vezes ,de Alfred Hitchcock, o filme da falecida realizadora belga Chantal Akerman, Jeanne Dielman, 23, Quai du Commerce, 1080 Bruxelles, ocupa o primeiro lugar da lista de melhores filmes de sempre da Sight and Sound.
Este pode não ser um nome muito conhecido entre o grande púbico, mas a realizadora é respeitada pelos seus pares e considerada uma das mais criativas mentes do cinema do séc. XX e, agora, está a ser introduzido a uma nova geração de cinéfilos, mesmo que nem sempre tenha sido compreendida pelas audiências ou que tenha demorado um pouco até a realizadora compreender o significado do filme.
Akerman nasceu na capital da Bélgica, Bruxelas, em 1950, no seio de uma família de sobreviventes do Holocausto, um tema que marcou presença nos filmes ao longo da sua carreira, por exemplo, no documentário de 2006, Down There, onde narra um mês na vida da realizadora onde esta viveu num apartamento em Tel Aviv a contemplar a sua família e a refletir sobre a sua infância e a identidade judaica.
Desde muito cedo, Akerman e a sua mãe possuíam uma ligação muito forte, algo que também ocuparia um tema central na sua filmografia, com esta a encorajar a filha a dedicar-se à sua carreira em vez de procurar casar cedo.
A paixão pelo cinema cresceu na realizadora depois de ter visto Pierrot le fou, filme de 1965 de Jean-Luc Godard, influente realizador que morreu em setembro deste ano. “Eu vi Pierrot le fou por acaso… e decidi fazer filmes nessa mesma noite”, disse, no passado, Chantal Akerman.
A realizadora ingressou, aos 18 anos, na escola de cinema belga, Institut National Supérieur des Arts du Spectacle et des Techniques de Diffusion, mas acabou por abandonar esta instituição quando começou a realizar a sua primeira curta-metragem, Saute ma ville, que esta financiou ao negociar ações de diamantes na bolsa de valores de Antuérpia.
A sua estreia nos grandes ecrãs aconteceu em 1971, Festival Internacional de Curtas-Metragens de Oberhausen, e nesse mesmo ano mudou-se para Nova Iorque, onde se deixou influenciar pelo trabalho de artistas como Stan Brakhage, Jonas Mekas, Michael Snow, Yvonne Rainer e Andy Warhol.
Esta voltaria para a Bélgica em 1974, onde, através de filmes como Je tu il elle, lançado nesse mesmo ano, se tornaria uma das mais importantes cineastas a explorar o universo feminista e questões da comunidade LGBTQ+, mas seria no ano seguinte, quando lançou Jeanne Dielman, 23 Quai du Commerce, 1080 Bruxelles, que a realizadora alcançaria o seu maior feito no cinematográfico.
Jeanne Dielman, como é popularmente conhecido, é “um estudo de quase três horas e meia sobre austeridade e minimalismo, direcionando uma câmara que ‘não pisca os olhos’ para uma dona de casa e prostituta belga abastada enquanto ela faz tarefas domésticas ou encontra clientes para sexo”, descreve o Times of Israel.
Neste filme, descrito como um dos melhores exemplos do “cinema lento, a realizadora aproveita a longa duração do filme, que se estende em 201 minutos, para mostrar minuciosos detalhes da vida quotidiana, durante três dias, de Dielman, uma mulher viúva, observando pacientemente como esta prepara refeições ou como limpa a casa.
Para pagar as contas e sustentar o seu filho, esta mulher prostitui-se, no entanto, o trabalho sexual é deduzido através de breves de interações com homens que vão ao seu apartamento. “Os homens são recebidos e vão embora e até os últimos 15 minutos explosivos do filme, não vemos trabalho sexual de forma alguma”, escreve o The Conversation.
Se grande parte do filme acontece ao ritmo de uma meditação, na reta final observamos Dielman a ver a sua rotina ser lentamente quebrada por pequenas ações, como cozinhar demasiado batatas ou a deixar cair um garfo limpo, e que culmina com um encontro com um “cliente”, em que esta atinge o orgasmo e depois assassina-o até à morte com uma tesoura, voltando depois para a mesa de jantar, onde se senta em silêncio durante minutos.
“Num filme que, de forma agonizante, retrata a opressão das mulheres, Akerman transforma o cinema, muitas vezes num instrumento que transforma a opressão das mulheres numa força libertadora”, escreveu Laura Mulvey para BFI.
Jeanne Dielman, com o passar dos anos, tornou-se um filme de culto e foi conquistando o seu espaço na comunidade do cinema, o filme já tinha sido incluído na lista da Sight and Sound, na 36.ª posição em 2012 e no 73.º lugar em 2002, tornando-se uma importante referência para cineastas como Céline Sciamma, que viu o seu Retrato da Rapariga em Chamas (2019) ser incluído nesta conceituado lista, Todd Haynes, que este ano lançou Tár, um filme que acompanha a queda da carreira da maestra fictícia, Lydia Tár, ou Gus Van Sant, que reconheceu uma influência direta em alguns dos seus filmes, como Gerry (2002) ou Elephant (2003).
No entanto, apesar da importante influência de Jeanne Dielman, a realizadora confessou que, na altura em que escreveu o filme, esta ainda não sabia o verdadeiro significado que este tinha.
“Enquanto escrevia, eu não entendia Jeanne Dielman. Eu não percebi até muitos anos depois: este é um filme também sobre rituais judaicos perdidos, não apenas sobre uma mulher obsessiva. Ela é tão obsessiva para evitar deixar uma hora aberta para a ansiedade. E quando essa hora chega, toda a sua ansiedade vem à tona”, disse a realizadora numa entrevista com Nicole Brenez, citada pelo blog Far Out, explicando que estes pequenos rituais ajudavam a cuidar da sua frágil saúde mental.
“Eu percebi esta mensagem depois de uma crise mental e de uma nova análise”, acrescentou a realizadora. “Eu queria que minha mãe celebrasse Sabbath, acendesse as velas; foi algo que surgiu após a morte do meu avô paterno. O homem que me aceitou como uma menina. Quando ele morreu, eu ainda era pequena; eles tiraram-me da escola judaica de um momento para o outro e isso foi um choque, pois quebrou outra ligação com meu avô. Celebrar, para mim, significava reatar os meus laços com esse homem que me aceitou como menina”.