DOHA – “Este parte, aquele parte, e todos, todos se vão…”, cantava o Adriano Correia de Oliveira. Falava da Galiza, ele que morreu cedo porque morrem cedo os que os deuses amam, mas eu falo do Qatar e de Doha, destes dias de despedidas, cada vez menos gente com quem repartir as carruagens de metropolitano que demandam os estádios, cada vez menos companheiros de trabalho nos autocarros silenciosos, elétricos, que nos devolvem ao Centro de Imprensa que fica entre Al-Garrafah e Al-Rayaan, um desmontar de feira que, apesar de tudo, para os qataris não é absolutamente definitivo porque 2023 é ano de Taça da Ásia das Nações e o Qatar irá aproveitar todas as infra-estruturas, ou quase, para receber a competição, ainda por cima com a responsabilidade acrescida de ser, atualmente, o campeão asiático.
Está na hora de fazer a mala, a minha mala pequena de camisas e livros, escova de dentes e pouco mais, mala de quem está habituado a ser um navio sem destino de ter cais. “Take the long way home”, surge-me, de repente, à memória, a música dos Supertramp, que apareceu lá para a nossa adolescência no Breakfast in America, letra irónica de quem se encontra perdido num daqueles momentos da existência nos quais até a mulher começa a pensar que o fulano faz parte da mobília: “There are times that you feel you’re part of the scenery/All the greenery is comin’ down, boy/And then your wife seems to think you’re part of the furniture/Oh, it’s peculiar, she used to be so nice…” Não tenho mulher que me confunda com uma mesa de cabeceira ou com um armário ou com um psiché, mas sim, de há muito que faço parte deste cenário quotidiano de ir e voltar dos jogos, procurar a internet mais fiável, sentar-me frente ao rectângulo escuro do qwert, carregando com a força da urgência no teclado, vendo surgir, no outro retângulo, aquele iluminado que fica mais acima, caracteres que façam sentido na hora de ganharem a forma de prosa.
Repetição
É um mantra que se repete de dois em dois anos, desde 1996 para cá, Campeonatos da Europa e Campeonatos do Mundo, enchem os dedos de duas mãos e faltam ainda dedos, a Terra percorrida de leste a oeste atrás da seleção nacional, de Manaus a Yokohama onde, por exemplo, há pouco mais de vinte anos conheci pela primeira vez o meu tão querido irmão mais velho Luiz Felipe Scolari, na véspera de vencer a Alemanha por 2-0, com dois golos do Ronaldo gordo, e não imaginando que pouco tempo depois estaria trabalhando a seu lado nos anos maravilhosos de 2004 e 2006, nos quais Portugal esteve presente na final de um Europeu e na meia-final de um Mundial graças a um grupo único de amigos, companheiros, camaradas que se mantém unido até hoje, reencontrando-nos sempre que podemos. “When lonely days turn to lonely nights/You take a trip to the city lights” – não tenho dias solitários porque a solidão é uma das minhas mais queridas companhias. A cidade, essa, é escrava do néon. Todos os prédios se acendem e se apagam num bacanal luminoso que faz surgir numa fachada a cara de Mbappé, de Messi, de Ronaldo ou de Neymar, as bandeiras de todos os 32 países que por aqui passaram, com maior ou menor brilho, neste momento, na verdade, pouco importa, há apenas uma final dos pobres para disputar, amanhã, no Khalifa, o verdadeiro Estádio Nacional de Doha, entre Marrocos e Croácia na luta pelo terceiro lugar, e a final de domingo, lá para norte, em Lusail, no enorme estádio que não tarda será transformado num centro comercial à mistura com clínicas, cinemas, ginásios e até apartamentos para gente rica, muito rica. “Does it feel that your life’s become a catastrophe?/Oh, it has to be, for you to grow, boy/When you look through the years and see what you could have been/Oh, what you might have been/If you would have more time…” Catástrofe de partidas e de chegadas, isso sim. De aeroportos cada vez mais insuportáveis, cada vez menos convidativos, não olho para trás, não vale a pena, é apenas mais um Campeonato do Mundo que chega ao fim, quantos mais terei na minha frente?, não sei responder, se calhar mais nenhum, pode ter sido a última porta a fechar-se no momento de sair para o patamar da vida e entrar no Natal da convenção, estava aqui tão bem, aqui não há Natal, logo eu que odeio o Natal, que não sei o que fazer com o Natal, olhem, meto as mãos nos bolsos e encolho os ombros, segunda-feira, bem cedo, encaixar-me-ei no meu lugar no avião, espero que não seja uma coxia, é uma porra viajar nas coxias porque ou é impressão minha ou os corredores são cada vez mais estreitos e as ancas das hospedeiras são cada vez mais largas…