Vislumbres de uma Síria alegre, quase normal, com alguma esperança apesar do peso do regime, assombram quem assiste ao filme Swimmers [As Nadadoras], da Netflix. Trazem à memória outros tempos, antes do caos que se seguiu à Primavera Árabe e de duas irmãs, Yusra e Sara Mardini, então com 17 e 20 anos, acabarem por ter de fazer a perigosa travessia do Mediterrâneo, em 2015. Permitindo-lhes fugir da guerra civil, chegar à Alemanha e cumprir o sonho de Yusra de nadar nos Jogos Olímpicos do Rio de Janeiro, no ano seguinte, sob a bandeira da equipa de refugiados. Dando por si a assistir à sua vida na tela, representadas por duas irmãs libanesas, Nathalie e Manal Issa.
O conflito pode ter saído da agenda mediática, mas continua bem vivo. Assim como uma nostalgia algo agridoce entre aqueles que escaparam. «Quando falamos sobre o Médio Oriente, as pessoas têm esta ideia de um mundo muito cinzento onde tudo está derrubado e caído no chão, portanto trouxe-me imensa alegria ver como isso foi capturado. Mostrou a triste realidade de nós tentarmos sermos adolescentes normais, o que é muito real», explicou Yusra, à conversa com o Middle East Monitor. «Uma das cenas mais importantes para mim é aquela em que eu e a minha irmã estamos a dançar no meu aniversário e há um bombardeamento. Mostra que, enquanto pessoas a viver numa zona de guerra, tentámos normalizar as nossas vidas tanto como possível».
Afinal, não tiveram outra opção que não essa. Quando rebentou a guerra civil, em 2011, a sua principal preocupação deixou de ser os intensos treinos de natação com o pai, Ezzat Mardini, interpretado por Ali Suliman, o treinador e grande impulsionador do sonho olímpico das filhas. A revolta que alastrava na Tunísia, Egito ou Líbia chegara à Síria, onde o regime de Bashar Al-Assad recusou ceder, reprimindo protestos pacíficos que rapidamente resultaram numa guerra. Milícias e senhores da guerra tomaram conta de boa parte do país, Moscovo e Teerão vieram em auxílio da dinastia Assad e movimentos curdos combatiam tanto o regime como os jihadistas, num conflito que se arrastou até hoje. Obrigando a família Mardini a fugir de Darayya, o subúrbio de Damasco onde viviam, e a abrigar-se mais para dentro da capital, saltando entre a casa da avó e da tia de Sara e Yusra. Aliás, o regime só retomaria Darayya em agosto de 2016, quando Yusra já se encaminhava para o Rio de Janeiro.
Mesmo numa cidade em estado de sítio, o contraste entre aquilo que se vê em Swimmers e as imagens frequentemente associadas ao Médio Oriente é enorme. Enquanto o Daesh lançava um terror quase medieval no interior do país, impondo a sharia, a lei islâmica, vemos na capital síria uma sociedade com uma profunda tradição secular, onde jovens mulheres como Yusra e Sara dançam em discotecas ao som de David Guetta, um primo seu que é DJ oferece shots, tudo isto ao som de explosões, tiros e fumo nos arredores da cidade. Yusra e Sara têm de navegar os abusos das cruéis tropas de Assad, fugir dos tiros de snipers da oposição e tentar enfrentar perdas entre amigos próximos. Mas o grande escape de Yusra era nadar, mesmo que o tivesse de fazer sob o olhar de um retrato de Assad, omnipresente nas regiões sírias controladas pelo regime. «Na água estás sozinha. É a tua luta», lembra-lhe o seu pai no filme. «Tens um objetivo e tens de alcançá-lo». Contudo, nem debaixo de água teria descanso, com combates e fogo de morteiro próximo da piscina.
Não espanta que, em comparação, mesmo a perigosa viagem para a Europa parecesse razoável, após Angela Merkel decidir abrir as portas aos refugiados sírios. Este anúncio talvez tenha sido dos mais decisivos da carreira política da chanceler, mas também da vida das irmãs Mardino, à semelhança de outros 800 mil sírios «Quantas vezes estivemos perto da morte?», perguntou Sara no filme da Netflix, enquanto o pai se mostrava furioso com a ideia das duas filhas irem para a Alemanha, de maneira a aproveitar o programa para reunir famílias antes que Yusra se tornasse maior de idade. Não havia outras opções. «Quem me dera que pudessem ir de avião», lamentava a mãe, Mervat Marvini, interpretada por Kinda Alloush. «Porque os países europeus estão simplesmente a oferecer vistos aos sírios», ironizou Sara.
Foram 25 dias de viagem, indo para a Turquia de avião, fazendo-se passar por meros turistas, antes de embarcar para a Grécia, nas mãos de traficantes humanos, que contactaram num grupo de pouca confiança no Facebook. As irmãs deram por si num barco de borracha sobrelotado, com 18 outras pessoas, atravessando as águas geladas do Egeu. A meio, o motor falhou, ficaram à deriva, forçando as duas irmãs que sonhavam ser campeãs olímpicas a saltar para o mar e a nadar, com ajuda de outra pessoa, arrastando o barco durante horas. «Honestamente, não estava a pensar em nada, estava só a tentar sobreviver, a salvar-me a mim mesma e a toda a gente no barco», salientou Yusra à Harper’s Bazaar. «No momento, só pensas em coisas simples».
Chegando à costa, após três dias sem comida ou água potável, tiveram de passar pela miséria da ilha grega de Lesbos e enfrentar descriminação por parte de uma população farta do crescente número de refugiados que ali chegava. «A partir daí foi a pé, caminhámos, usámos autocarros, táxis, o que quer que conseguíssemos usar», descreveu Yusra à revista Time. Inicialmente tinha reticências até em usar o termo ‘refugiada’, recordou. «As pessoas tratavam-te como se tivesses algum tipo de doença, como se não fosses humano», lamentou. Face a essa hostilidade, o grupo de cerca de trinta refugiados com que atravessaram a Europa tornou-se como uma «grande família», decidindo até dormindo por turnos para se protegerem uns aos outros.
Se movimentos nacionalistas chegavam a retratar os direitos concedidos aos refugiados como se fossem um privilégio, não é essa a realidade, mesmo quando chegam a países de acolhimento, assegurou Yusra. «Não é uma vida luxuosa. Tens de preencher tanta papelada, algumas pessoas caem em depressão, algumas não são aceites pelas sociedades anfitriãs», explicou. «Tiveram de deixar para trás tudo aquilo que conheciam».
Apesar das dificuldades, lá conseguiram chegar à Alemanha, onde Yusra surpreendeu um clube de Berlim, o Wasserfreunde Spandau, com os seus tempos. Ficando sob a alçada de um treinador entusiástico, interpretado por Matthias Schweighöfer, Yusra conseguiu qualificar-se para os Jogos Olímpicos de 2016, onde competiu nos 100 metros em mariposa e nos 100 metros estilo livre.
«De início eu não aceitei o facto de viver na Alemanha, porque pensei que ficaria lá por uns tempos, e que depois nós poderíamos voltar a casa quando a guerra acabasse», recordou Yusra à revista de moda americana. «Mas não foi isso que aconteceu, infelizmente. Aquilo que me fez sentir em casa outra vez foi nadar», explicou. Desde então, a história das irmãs deu-lhes uma visibilidade global, tendo Yusra conseguido qualificar-se para os Jogos Olímpicos de 2020, em Tóquio, escolhendo continuar na equipa de refugiados, apesar de, desta vez, poder entrar na seleção síria. Enquanto trabalhava como embaixadora das Nações Unidas, discursando no Fórum Económico Mundial, perante algumas das figuras mais poderosas do planeta, bem como no Google Zeitgeist, WE Day e Global Women’s Forum e tendo começado a estudar Cinema e Televisão na Universidade do Sul da Califórnia, em Los Angeles.
Já Sara não esqueceu o que passou em Lesbos, voltando à ilha para ajudar outros refugiados, acabando detida pelas autoridades gregas sob acusação de tráfico humano, à semelhança de outros ativistas, e passando 107 dias na prisão. Já a sua Síria natal continua dilacerada pelo conflito, tendo a ONU avisado em setembro que o país estava em risco de voltar a ter combates a larga escala. E milhões de sírios não têm maneira sequer de aquecer as suas casas, avançou a Reuters, antevendo-se mais um inverno duro.
«Quero que todos os espetadores compreendam que os refugiados não têm escolha que não abandonar os seus países. Eles saem por causa de guerra e violência», garantiu Yusra ao Middle East Monitor. «E há mais do que espaço suficiente neste planeta para todos».
Quanto a ver a sua vida e da irmã representada no cinema, Yusra mostrou-se contente de que tenham sido retratadas por outras duas irmãs de origem libanesa, que também sabem bem o que é viver em cidades devastadas, num país marcado por décadas de guerra civil. Contudo, ver diretores de cinema tão interessados em ver a sua história e da irmã na tela ainda a surpreende.
«É surreal. Não acordas todos os dias a pensar sobre o que aconteceu na tua vida. Mas quando nós o vimos no ecrã durante duas horas, foi algo muito emocional de se assistir», explicou a jovem nadadora olímpica à revista de moda americana. «Mas este filme conta a história de milhões de refugiados por todo o mundo. Não é só a minha história».
Isso é algo que esteve muito presente para a realizadores de Swimmers, Sally El Hosaini, «Por mais inspiradora que seja a história de Yusra e Sara, eles são o 1%»,garantiu Hosaini em entrevista à Forbes. «E nós também queríamos representar os 99% dos refugiados que não têm esses resultados e final feliz»