Entrando pelo majestoso arco românico da Igreja de Nossa Senhora dos Prazeres, em Aljubarrota, estamos a seguir os passos de Nuno Álvares Pereira, que ali foi orar na véspera da batalha de Aljubarrota, segundo reza a lenda. É um edifício que é «uma aula de história», assegura-nos o pároco, enquanto nos guia pela nave da igreja, salpicada por altares e arcos dos diversos estilos arquitetónicos, que atravessam séculos. Olhando em frente, à direita de onde o condestável rezou antes de ir combater o rei castelhano, a 14 de agosto de 1385, agora há baldes para apanhar a chuva, que estão a ser diligentemente despejados por uma fiel. Levantando os olhos, vemos um teto comido pelos bichos da madeira, que bem precisa de um restauro. Ali ao pé, a Ermida de São João Baptista, também classificada como monumento de interesse público, até está a tombar, como se fosse uma espécie de Torre de Pisa.
De vez em quando vão à Igreja de Nossa Senhora dos Prazeres miúdos, em visitas de estudo, desta vez foi o Nascer do SOL. Guiado pelo pároco, que por convicção fez questão de não ser mencionado pelo seu nome. «O meu nome só o quero escrito numa pedra quando morrer», explica-nos, oscilando entre um tom sério e brincalhão, mas sem que o conseguíssemos de alguma forma demover. «E que seja daqui a uns cinquenta anos, mas suspeito que vá ser mais cedo», rematou.
Não tardou a que o assunto ficasse esquecido, entre a discussão sobre a força do estilo romântico, prevalente no início da Idade Média, pensado para que as igrejas pudessem servir como reduto em caso de ataque, e a transição para os elegantes arcos do estilo gótico, a apontar para cima como quem procura o seu. Provavelmente, o Santo Condestável teria visto a porta românica da Igreja de Nossa Senhora dos Prazeres, mas não a capela lateral gótica, mas é difícil ter a certeza. «Lembre-se que nós estamos na ponta da Europa», aponta o pároco de Aljubarrota. «Estas coisas vão chegando cá mais tarde do que a outros lados. Mas chegam».
O legado histórico desta igreja vai muito para lá da Idade Média. Noutro lado veem-se colunas retorcidas, circulares ao estilo das construídas por Gian Lorenzo Bernini, o artista barroco, do séc. XVII, responsável por muita da arquitetura que hoje associamos ao Vaticano, na Basílica de São Pedro.
«Claro que é a igreja de referência para a cristandade, a partir daí isto apareceu nas igrejas de todo o mundo. E não havia a internet, nem a mesma facilidade em replicar», continua o pároco, enquanto caminhava entusiasmado em direção ao altar, para apontar outro arco.
«Isto faz-lhes lembrar de alguma coisa, já que são de Lisboa?», pergunta-nos, sorridente. «Não lhes faz lembrar o Terreiro do Paço?». E fazia, de alguma maneira. Tratava-se do trabalho de um dos mais ilustres filhos da terra, Eugénio dos Santos, um arquiteto militar, encarregue da reconstrução da Baixa Pombalina de Lisboa após o terramoto de 1755. Pelo meio, no regresso a casa, deixou uns pedaços do seu trabalho na localidade que o viu nascer.
Se à época Aljubarrota já seria algo periférica, hoje essa sensação aprofunda-se. Vê-se pouca gente na rua, mas não só por ser uma quarta-feira em que choveu a rodos, é quase sempre assim, asseguram-nos todos os moradores com que falámos. Experiencia-se a conhecida tranquilidade da decadência do envelhecimento rural, pontualmente interrompida por turistas que aparecem em Aljubarrota, por terem ouvido falar da célebre batalha. Normalmente, olham em seu redor, veem pouco e vão embora desiludidos.
«Aqui não há nada», foi a frase que mais ouvimos nas ruas de Aljubarrota. «Aqui não havia nada para», repetiu-nos Susana Bernardo, uma bancária que partira da sua terra aos 18 anos, voltando para visitar a família. Mesmo o estatuto de aldeia histórica trouxe pouco, para lá de terem trocado estradas de alcatrão por calçada portuguesa, que trouxe problemas. «Os meus pais estão velhotes, têm dificuldade em andar e iam caindo uma série de vezes», queixa-se Susana Bernardo, à porta do único café da localidade, o Café Torcato. Um outro pedaço de história, dado ter sido aqui que saiu o último prémio do Euromilhões em Portugal. «Vieram cá as televisões e tudo», contam-nos os habituais do café, orgulhosos. E muitos começaram a jogar com mais afinco, incentivados pela boa sorte do vizinho.
Fora isso, mais a feira medieval no verão, que é uma enorme agitação, não acontece grande coisa. A sensação geral é que a fama da terra devido à batalha de 1385 é pouco aproveitada. Ao ponto de até os locais terem dúvidas quanto a onde exatamente ficaria o suposto forno da padeira de Aljubarrota, nomeada na lenda – vista com enorme ceticismo por historiadores – como Brites de Almeia e cuja casa foi ‘descoberta’ pelo Estado Novo. O Nascer do SOL despoletou uma discussão sobre a localização do marco no café local. Mas não surpreende a confusão, dado ser tão discretamente marcado, sob uma placa onde se lê: «Aqui se afirmou Portugal».
Para o pároco de Aljubarrota, não é a historicidade da padeira que está em questão, quando tenta defender esse património. «As lendas ou as tradições são verdade ou não?», questiona. «Se ela existiu? Não. Mas que é verdade é», assegura-nos o sacerdote, pensativo. «Os portugueses do séc. XIV não queriam os castelhanos cá, de forma nenhuma».
«Os portugueses não, uma parte significativa dos portugueses», ressalva. Aliás, o próprio Nuno Alvares Pereira tinha um meio-irmão do lado espanhol, Pedro Álvares Pereira, que combateu contra o condestável na batalha dos Atoleiros. Um pouco como na Ucrânia, que o padre de Aljubarrota vê como muito semelhante à guerra que fez a sua paróquia famosa. «O ser humano evoluiu pouco» , lamenta. «Nós evoluímos espetacularmente na capacidade de fazer o mal e de matar. Mas de resto…», continua, encolhendo os ombros.
Apesar de possuírem uma história tão rica, que poderia contribuir para que os turistas não ficassem tão desapontados ao chegar a Aljubarrota, há muito pouca esperança de que a Igreja de Nossa Senhora dos Prazeres ou a Ermida de São João Baptista recebam o restauro de que precisam.
No que toca à ermida, está torta porque «na década de 70, fizeram um desaterro para fazer uma estrada, descalçou as fundações do arco cruzeiro, o que provocou um deslocamento na base ao longo dos anos», explica António Monteiro, um engenheiro reformado da direção-geral de edifícios e monumentos nacionais, entretanto extinta, que tinha sob a sua alçada o património classificado.
Monteiro deslocara-se a Aljubarrota para avaliar os estragos, mais o arquiteto Antero Carvalho e o engenheiro eletrotécnico Luís Ribeiro. O arranjo faz-se, com microestacas e pregagem na base do arco, mas deverá custar entre setenta e cem mil euros. «O mais difícil é arranjar o dinheiro», aponta António Monteiro. Entretanto, a Ermida de São João Batista vai tombando, com uma fita métrica colada nas fissuras, para avaliar os danos. «Aquilo não está para cair amanhã. Mas se não fizermos nada vai acabar por cair», alerta o engenheiro.
«A gente não quer deixar isto degradar-se», ressalva o pároco de Aljubarrota. «Mas sabemos que isto é pobrezinho comparado com o que é o resto do património. Comparado com as necessidades que existem no país, com edifícios do Estado que estão em ruínas, nós somos um grãozinho de areia, ultraperiféricos», suspira. «Não temos esperança nenhuma».