O homem que de um restaurante criou um mundo

Evaristo Cardoso esteve no comando do Solar dos Presuntos quase até ao último dia. No espaço, conheceu, conviveu e serviu celebridades de todas as áreas, tanto nacionais como internacionais. Morreu na terça-feira aos 80 anos.

Faleceu na terça-feira, aos 80 anos, o monçanense Evaristo Cardoso, padrinho da iguaria gastronómica “Foda à Monção” e fundador do Solar dos Presuntos – histórico restaurante de Lisboa, que abriu portas em 1974.

“É com enorme tristeza que informamos os nossos amigos de que hoje partiu metade da alma do Solar. Hoje choramos com a alegria de saber que contámos com ele ao nosso lado até ao fim e que uma grande parte do senhor Evaristo ficará para sempre na mesa do canto, a olhar por todos nós. Morreu o Evaristo de Monção, o Evaristo do Solar, o Evaristo da Graça, o Evaristo do Lila”, lê-se na nota divulgada nas redes sociais do restaurante que estará encerrado durante dois dias. “Morreu o Evaristo, um amigo vosso, que viveu para vos servir”, acrescenta. O funeral realiza-se esta quarta-feira na Igreja de São José, seguindo depois para o cemitério do Monção, de onde era natural.

O vencedor do Prémio Carreira Guia Boa Cama Boa Mesa 2017, foi hospitalizado segunda-feira, a meio da tarde, acabando por falecer um dia depois, no hospital de Santa Maria.

 

Uma vida carregada de reconhecimentos

Evaristo Cardoso era uma figura muito conhecida e respeitada na sociedade portuguesa, com o seu restaurante a ser frequentado por grandes figuras nacionais e internacionais que vão desde atores de cinema e teatro, aos jogadores de futebol, cantores, humoristas e políticos. As provas estão ainda hoje expostas pelas paredes do Solar dos Presuntos, que carregam rostos conhecidos como os de Cristiano Ronaldo, do fadista Carlos do Carmo, dos Scorpions, Daniela Ruah, Jean Reno, Fernando Mendes e Jorge Jesus (que lá ia jogar às cartas com o proprietário). Os três pisos que constituem o Solar contam com cerca de 180 lugares distribuídos por cinco salas.

Em 2017, o júri justificou a sua distinção no Prémio Carreira Guia Boa Cama Boa Mesa: “A 30 de outubro de 1974, Evaristo Cardoso, juntamente com a esposa, Graça, e o seu irmão Manuel, naturais de Monção, abriram um dos restaurantes mais emblemáticos da cidade de Lisboa: o Solar dos Presuntos. Inicialmente, era uma pequena sala, com lugar para atender seis clientes ao balcão e mais 12 à mesa. A boa fama, resultado da excelente cozinha minhota, passada entre gerações, neste caso de sogra para nora, aliada à qualidade dos produtos, que Evaristo Cardoso fazia questão de comprar pessoalmente, deslocando-se frequentemente à sua região natal, elevaram a casa a um estatuto de prestígio”, explicaram os jurados.

Considerado um dos embaixadores da gastronomia nacional, foi, em fevereiro de 2022, condecorado por Marcelo Rebelo de Sousa, com a Ordem do Mérito Empresarial e Comercial, no dia em que celebrou os seus 80 anos de vida, pelo seu “percurso inovador, empreendedor e persistente, ao longo dos anos, no setor da restauração”.

Além disso, em julho, prestou-se homenagem a Evaristo e à sua esposa, Graça, com a apresentação de um mural com os seus rostos, da autoria de um dos maiores artistas de street art do mundo, Vhils, na nova esplanada do restaurante.

 

O Solar dos Presuntos

“Quem entra nesta Casa, entra na sua Casa, foi assim que quisemos que fosse e para isso fundámos o Solar dos Presuntos. Em mais de quarenta anos de existência (abrimos as portas no dia 30 de Outubro de 1974) recuperámos a grande tradição da cozinha minhota”, lê-se no site oficial do restaurante.

“O êxito deve-se muito à qualidade dos produtos”, explicava ao Nascer do SOL, o proprietário e fundador do Solar dos Presuntos, em setembro de 2018.

As santolas, lagostas e lavagantes vivos, chegam ao final da manhã e são diretamente colocados num aquário de grande dimensão, que dá as boas vindas a quem entra. Na altura, Evaristo Cardoso afirmava que “os clientes podiam escolher o marisco que queriam degustar, antes de ser confecionado”.

A especialidade do Solar dos Presuntos continua a ser o arroz de lavagante. Porém, as receitas da mãe da esposa do chefe também fazem sucesso na capital. Os pratos que têm mais saída continuam a ser o peixe ao sal ou no forno (robalo, dourada ou pargo), arroz de lagosta e gambas, paelha com marisco, bacalhau no forno à minhota ou cabrito no forno à moda de Monção.

Durante a pandemia da covid-19, o espaço fixado na Rua das Portas de Santo Antão, 150, em Lisboa, fechou para obras, tornando-se num dos mais modernos restaurantes nacionais.

José Marquitos, gestor que passou pelos principais meios de comunicação – foi o primeiro administrador do SOL –, frequentador assíduo do Solar dos Presuntos e amigo do seu fundador, esteve com Evaristo ainda na semana passada. “Fui lá e ele tinha acabado de chegar de um tratamento que fazia com regularidade. Ainda consegui abraçá-lo”, conta ao telefone com o i. Segundo o mesmo, este era uma pessoa “muito educada, muito simpática, delicada e extraordinariamente afável”, que certamente terá sido uma das componentes de sucesso do restaurante. “Ele era de Monção, veio para Lisboa e de um pequeno restaurante fez um grande restaurante, obviamente que com a ajuda do seu filho, o Pedro”, acrescentou. Além disso, de acordo com José Marquitos, é de destacar também a sua cozinha. “Sempre teve uma cozinha ótima, muito baseada nos pratos tradicionais do Norte, que vão desde o cozido à portuguesa à quarta-feira, até ao arroz de cabidela”. “Foi uma pessoa com a qual lidei muitos anos na qualidade de cliente e amigo”, sublinhou.

Segundo José Marquitos, “vinham pessoas de todas as áreas, de todo o mundo. Parece que estamos a falar do mundo inteiro”, brincou.

Apesar de garantir ter muito carinho por todos os clientes, ao Nascer do SOL, em 2018, o dono confidenciou que o deputado Fernando Nogueira, a atriz Manuela Maria e Filipe La Féria, de quem era “amigo de longa data”, eram as suas presenças preferidas.

Também Mário Soares costumava lá ir várias vezes. Já o atual primeiro-ministro, António Costa, tinha, nessa altura, um prato de eleição: a paelha com marisco. Muitos brasileiros pagavam para que o proprietário tirasse a fotografia de José Sarney – ex-Presidente do Brasil – da parede. Evaristo recusava-se a fazê-lo: “ Faz parte da minha história”, explicava.

“O Cristiano Ronaldo, cada vez que vem cá, gosta de passar por aqui; a Madonna veio ao Solar comer peixe ao sal com batata a murro e legumes e o Jorge Jesus ainda continua a cá vir e muitas vezes, após o almoço, fica até às 16h da tarde a jogar às cartas comigo”, confessava o fundador. Ao longo dos mais de 44 anos, pelo Solar dos Presuntos passou também Amália Rodrigues, David Backham, Luiz Felipe Scolari, Cavaco Silva e Alberto João Jardim, entre muitos outros.

Estas são também algumas das caras conhecidas que estão no livro A Graça do Evaristo, sobre a história do restaurante, lançado em 2013 e escrito por Jorge Marques. “Este livro conta a história do casal Graça e Evaristo Cardoso e, como não podia deixar de ser, do Solar dos Presuntos”, relata-nos a sinopse do livro, um conjunto de histórias, imagens, factos, datas, distinções, receitas e depoimentos

A Federação Portuguesa de Futebol (FPF) também reagiu à morte de “um verdadeiro mestre de sabores” e uma “personalidade ímpar da restauração portuguesa e homem ligado ao futebol pela arte da cozinha, mas não só”: “Dedicou duas décadas da sua vida à Seleção Nacional onde se ‘estreou’ como cozinheiro apenas com 21 anos. Desde então, acompanhou a Equipa das Quinas integrado na comitiva nacional nas deslocações ao estrangeiro, fazendo com que a Seleção nunca deixasse de se sentir em casa”, referiu Fernando Gomes, presidente da FPF, em comunicado.

Esta já é a segunda grande perda este ano de nomes históricos da gastronomia portuguesa. Em agosto, Emílio Andrade, dono da Adega Tia Matilde e sócio número um do Benfica, morreu aos 101 anos. Emílio era a alma de um dos mais antigos e famosos restaurantes de Lisboa, também ele dedicado apenas à cozinha nacional. Entre as especialidades do estabelecimento que abriu em 1926, estão a Patanisca de Bacalhau, Caldeirada à Tia Matilde, Canjas de Garoupa ou Cherne com Amêijoas e Espinafres, Pato Corado com Arroz e Cabrito no Forno. Emílio Andrade herdou o negócio dos pais e trabalhou no espaço mais de 70 anos.