Tecnologia. Até onde pode chegar o impacto da IA na sociedade?

Na corrida pela inteligência artificial assistimos a um debate de prós e contras. Apesar dos alertas do astrofísico Stephen Hawking, muitos especialistas encaram o futuro com otismismo.

Por Lucas J. Botelho

A quatro anos da sua morte numa entrevista à BBC, o astrofísico Stephen Hawking alertou que “o desenvolvimento completo de inteligência artificial (IA)” podia provocar a extinção da raça humana. Hawking acreditava “não existir uma grande diferença entre o que podia ser atingido por um cérebro biológico ou um computador”, e que, em teoria, essa tecnologia podia chegar “ao mesmo nível de inteligência humana” e até excedê-la. 

O famoso cientista cognitivo Marvin Minsky, que trabalhou essencialmente na área da IA, definiu esta tecnologia como “a ciência de fazer as máquinas realizarem tarefas que requereriam inteligência caso fossem executadas por homens”. Esta definição é complementar à explicação de Herbert Simon, Nobel da economia e especialista em áreas como psicologia cognitiva e informática, que enunciou que “o comportamento destes programas é igual a um ser humano na forma como analisam dados e delimitam padrões que guardam na sua memória, de modo a chegarem a novas conclusões”.

A inteligência artificial, resume Ernesto Pedrosa, CEO da Automaise (uma empresa de assistência digital ‘inteligente’), consiste num programa com “capacidade de aprendizagem”, onde existe uma evolução cognitiva contínua.

O programa da Automaise funciona por meio de um “sistema de aprendizagem híbrido”. Um método ambivalente onde o assistente digital “aprende manualmente, ao analisar o diálogo em conversas telefónicas e o texto em trocas de emails da empresa, enquanto aperfeiçoa e melhora os seus conhecimentos” e com um método informático que consiste num “programa automatizado, que também é responsável pela aprendizagem”. Este processo tem uma duração de entre um e dois meses.

Por outras palavras, é considerado IA um programa capaz de aprender de forma autónoma, de modo a atingir um determinado objetivo. Este processo de assimilação de conhecimento pode realizar-se de duas formas: através da análise do comportamento humano ou mediante o processamento de informação exposta numa base dados (ex: estudo de triliões de dados disponíveis na internet ou um sistema informático que fornece a informação específica e fundamental para o ‘robot’ conseguir cumprir com a sua função).

Mas há que fazer uma distinção. Num artigo da revista Forbes, Tony Bradley, o editor-chefe da TechSpective, escreveu que “existe uma enorme diferença entre assistentes de voz digitais e inteligência artificial”, pois “estas plataformas de assistência digital são apenas motores de busca aperfeiçoados e ferramentas básicas de interação de voz”, que possuem “um nível de inteligência mínimo em comparação com a verdadeira tecnologia de inteligência artificial, com mecanismos de aprendizagem contínua”, que expandem as aptidões do programa.

Uma das expectativas da comunidade científica é que a IA atinja um estado de consciência.

Mas o que significa isso? Entre os especialistas na área existe o consenso de que um programa de inteligência artificial com consciência é aquele que for capaz de “pensar, percecionar e sentir”, algo muito para lá da utilização de uma linguagem que pareça ser natural e fluida. Até ao momento, que se saiba, a humanidade ainda não conseguiu criar IA com autoconsciência. Contudo já chegámos a um ponto em que uma máquina consegue iludir o ser humano.

Em junho deste ano, o engenheiro da Google Blake Lemoine alegou ao Washington Post que o novo programa de inteligência artificial da empresa – o LaMDA (traduzido em português: Modelo de Linguagem Para Aplicações de Diálogo) – tinha atingido um nível de consciência. 

Esta afirmação resultou de várias centenas de interações de Lemoine com o LaMDA. Contudo a Google emitiu de imediato um comunicado oficial a desmentir Lemoine: “Os nossos especialistas em IA já o informaram que as provas não suportam as suas alegações”. A explicação final quanto a este mal-entendido foi que o LaMDA foi ‘treinado’ para processar elevadas quantidades de texto na internet e, a partir desta análise de dados, conseguir encontrar padrões na linguagem que facilitam a escolha da próxima palavra que vai utilizar. Ou seja, o LaMDA estuda a comunicação humana ao ponto de se tornar impossível distinguir uma conversa com um ser humano ou o programa da Google (daí o engenheiro da tecnológica ter julgado que estava a conversar com algo dotado de consciência).

“Aumento generalizado da qualidade de vida” Ao i, Luís Paulo Reis, professor associado do departamento de Engenharia Informática da Faculdade de Engenharia do Porto (FEUP) e o atual presidente da Associação Portuguesa para a Inteligência Artificial (APPIA), defende que “estamos a dar um passo tão relevante como a revolução industrial”. A utilização de IA, antevê, pode ser algo semelhante à revolução dos transportes iniciada com a invenção da locomotiva a vapor por George Stephenson. “Não num sentido literal, mas no impacto que pode provocar na sociedade”, esclarece.

O presidente da APPIA vê como inevitável o desaparecimento de certos tipos de empregos. Por outro lado, acredita que com a “inteligência artificial vai ser possível reduzir de forma generalizada a maioria dos custos do Estado”, prevendo “uma diminuição do número de funcionários e a redução de gastos públicos, que poderão contemplar todo o tipo de setores, desde os transportes, a saúde e a área administrativa”, que passarão a ser assegurados por um corpo estatal parcialmente automatizado. Encarando o futuro com otimismo, Luís Paulo Reis vaticina que esta diminuição de custos irá permitir “atribuir os capitais excedentes para a melhoria das infraestruturas do Estado, criação de novos apoios e incentivos monetários aos cidadãos, o investimento em áreas de interesse, como a cultura, e em última instância, o possibilitar que cada cidadão possa executar tarefas do seu interesse, que exponenciem a criatividade e imaginação”. Resumindo: deverá verificar-se “um aumento da qualidade de vida de forma generalizada”.

O cenário pode ser comparado ao que o famoso economista John Maynard Keynes testemunhou na primeira metade do século XX, quando o avanço da segunda revolução industrial provocou uma elevada vaga de desemprego: “O aumento da eficiência técnica tem tomado lugar mais rapidamente do que conseguimos lidar com a absorção laboral”.

Na época, o economista salientou que o desemprego representava “apenas uma fase de ajuste”. A prazo, afirmou, “a humanidade vai resolver este problema económico” e “o padrão de vida em países liberais, dentro de 100 anos, vai estar quatro a oito vezes mais alto do que nos dias de hoje”.

Possíveis impactos da IA na economia e sociedade O debate sobre a inteligência artificial deve ter em conta de que forma esta revolução pode afetar o setor profissional e económico, como também o seu ritmo e rapidez de desenvolvimento, e o que é expectável que se consiga alcançar nos próximos anos.

Um relatório da Mckinsey publicado em julho de 2019 – ‘O futuro Do Trabalho na América: Pessoas e Locais, Hoje e Amanhã’ – fundamenta como “em breve”, 40% dos empregos nos EUA podem estar em risco. Neste estudo, a consultora empresarial começa por delinear os diferentes tipos de economia no país, ao fazer separações claras entre economias em regiões urbanas, industriais e agrárias.

Num capítulo específico do documento são abordados os riscos da automação no mercado de trabalho americano. Constatando que cerca de 40% dos empregos nos EUA estão relacionados com funções de escritório (secretário, técnico de apoio administrativo), empregos na área alimentar (serviço alimentar), serviço de apoio ao cliente (call center), forças de produção (fábricas, estaleiros) e retalho/ vendas. Segundo o relatório, são estas as primeiras funções a “encolher” até 2030, pelo facto de se tratar, maioritariamente, de “tarefas que envolvem atividades físicas do quotidiano”. “Nenhuma comunidade vai estar imune a ser substituída” por um sistema automatizado, adverte. Contudo, é enfatizado que estas perdas de emprego não vão ser repentinas, pois é um processo progressivo que já está em andamento. Basta contabilizarmos que só no mercado de laboral americano, cerca de 226 mil empregos já foram perdidos entre 2012 a 2017, em funções como assistentes administrativos, cobradores e contabilistas.

Ainda assim, nem todas as notícias são negativas. De acordo com a investigação da Mckinsey, vamos assistir ao crescimento de novos empregos até 2030, enquanto se verifica um decrescimento noutros setores. A consultora confirma que é expectável um aumento de empregos em áreas como a saúde, ocupações “stem” (áreas relacionadas com engenharia, matemática, ciência, tecnologia), “atividades que envolvam um estímulo criativo” e serviços empresariais (contabilidade / auditoria, consultoria, gestão e manutenção de instalações). E, por outro lado, vamos observar situações contraditórias dentro do mesmo setor. Como é o caso do retalho e vendas, onde é provável termos “uma diminuição dos empregados de balcão no atendimento ao cliente”, mas é possível que sejam contratados mais funcionários para auxiliar nos centros de distribuição.

O que já existe? Uma tecnologia cada vez mais presente nos últimos anos são os chamados ‘chatbots’, um programa de assistência pessoal que habitualmente recorre a inteligência artificial para simular uma conversação com um assistente humano.

Nos últimos anos esta tecnologia transbordou para todo o tipo de empresas, em áreas como finanças, retalho, saúde, direito e lazer, para executarem funções do dia a dia e de apoio ao cliente.

Uma das críticas mais frequentes a estes programas de computador é que não têm um comportamento verdadeiramente ‘inteligente’, capaz de fornecer respostas personalizadas que vão de encontro às necessidades do cliente.

Num artigo publicado em março deste ano, o New York Times contrapõe que, de acordo com os “investigadores, executivos da indústria e analistas”, estes chatbots tornar-se-ão “menos robóticos e vão ter um comportamento mais semelhante ao do ser humano”. Bern Elliot, um analista da Gartner, comentou que “ainda não é tão bom quanto desejávamos que fosse, mas já está a caminhar nessa direção. A inovação está a ocorrer a um ritmo acelerado”.

Também Ernesto Pedrosa reconhece existirem inúmeras falhas nestes chatbots. Sublinha, no entanto, que é preciso ter em conta que nem todos os programas correspondem a “verdadeira inteligência artificial”. Estes assistentes digitais utilizam “guiões pré-escritos, que procuram palavras-chave” e não possuem uma capacidade de análise profunda, pelo que “acabam por conseguir responder apenas a perguntas frequentas, que não acrescentam qualquer tipo de valor”, complementa.

Outro aspeto essencial, alerta Pedrosa, é a supervisão da IA, visto que é uma tecnologia que funciona com base na aprendizagem exterior e, caso não haja um controlo na informação transmitida, “pode haver uma situação perigosa, como o que aconteceu com o chatbot da Microsoft que foi colocado a aprender no Twiter”. Ao fim de algumas horas, a máquina já produzia textos controversos, com base no comportamento dos utilizadores, entre eles tweets com um teor racista e xenófobo.

O CEO da Automaise acredita que se, pelo contrário, houver um “deliver de informação” que seja feito de forma “supervisionada e controlada”, é possível termos enormes vantagens na experiência do cliente “e nos níveis de eficiência”. E aponta alguns exemplos bem-sucedidos – “no reagendamento de uma entrega, alteração de um IBAN ou de uma matrícula”.

Luís Paulo Reis, presidente da APPIA, não tem dúvidas quanto à aplicação desta tecnologia para atividades mais complexas, dando como exemplo as urgências dos hospitais, onde é necessária uma avaliação do paciente. Com a utilização de IA, vai ser exequível analisar “além dos sintomas referidos pela pessoa – todo o histórico do indivíduo”, recorrendo a dados de análises de sangue, diagnósticos e intervenções anteriores (disponíveis numa base de dados), entre outros aspetos, de modo a que num curto espaço de tempo, se consiga obter um diagnóstico mais fiável, de forma “mais rápida e eficiente, que a metodologia e capacidade humana”.

 

Um caso: a indústria mineira Um dos setores onde a IA poderá trazer grandes mudanças é a indústria minera, que tem vindo a substituir os seus trabalhadores em larga escala.

Segundo a empresa de tecnologia de informação Infosys, a automação das operações da indústria mineira acarreta fortes benefícios.

Com o seu programa de inteligência artificial, passa a ser possível a utilização de máquinas que “têm uma capacidade de aprendizagem autónoma e um sistema computação cognitiva” – que dispõem de uma utilidade para analisar todo o tipo de dados comuns nesta área, desde a topografia, a mineralogia, ou a geomecânica, que avalia o comportamento mecânico do solo e das rochas, permitindo avaliar o risco de derrocada ou prever o comportamento do solo na construção de um túnel.

A Infosys conclui que esta tecnologia trará uma facilitação na prospeção (a primeira fase de análise geográfica de um território), descoberta e exploração de terrenos.

Contemplar a automação da indústria mineira permite pesar as duas faces da moeda. Por um lado, os benefícios são evidentes, dada a consciência generalizada quanto aos riscos de acidentes laborais neste setor. Em sentido inverso, há que ter em conta os impactos socioeconómicos.

A Organização Mundial do Trabalho contabiliza que morrem anualmente mais 15 mil trabalhadores em acidentes relacionados com a indústria mineira. E mesmo este número pode estar subavaliado, sendo necessário compreender todas as outras fatalidades que muito dificilmente podem ser contabilizadas, como é o caso das mortes provocadas por doenças respiratórias. Segundo a agência federal americana Instituto Nacional de Segurança e Saúde Ocupacional, os mineiros “correm o risco de desenvolver uma doença pulmonar chamada pneumoconiose, por inspirarem partículas de poeira inorgânica” nociva para o organismo. Além disso, existe um aumento substancial da probabilidade “de falecerem com cancro do pulmão”.

No outro prato da balança encontra-se a perda maciça de empregos e o tipo de impactos que pode gerar na economia. Contudo a IA não é o único causador de desemprego neste setor. Um relatório elaborado pelo Centro de Políticas Para o Desenvolvimento, um think tank australiano, prevê que, caso o governo australiano avance com o seu plano de descarbonização (até 2050) na indústria mineira e outros setores associados – com o começo do desmantelamento de explorações de carvão, gás e petróleo -, cerca de 300.000 empregos no país podem estar em risco.

Produção automóvel e transporte rodoviário Outro setor de atividade ameaçado é a indústria automóvel. 

Uma investigação da Pwc (PricewaterhouseCoopers), uma das maiores multinacionais de consultoria e auditoria a nível mundial, avalia em 56% o risco de eliminação de emprego na área do transporte rodoviário, até 2030. Na produção de automóveis, o futuro também não parece animador, dados os últimos avanços tecnológicos.

Recentemente a sul-coreana KIA inaugurou uma fábrica com um sistema de produção ‘inteligente’ e automatizado, que recorre a robótica e inteligência artificial para produzir o EV6, um novo modelo elétrico.

A utilização de robótica no setor automóvel não é novidade, mas o que distingue este sistema é que, de acordo com a marca, não vai existir qualquer tipo de intervenção humana em toda a composição do automóvel, exceto na inspeção final, após a conclusão de todas as etapas.

Na linha de montagem os robots são responsáveis pela colocação de dezenas de parafusos em diversas peças do veículo, e o transporte do conjunto de baterias do automóvel é feito através de um “veículo guiado automatizado” (sigla em inglês: AGV), equipado com comunicação wireless e sensores de proximidade. Outro processo completamente automatizado é a pintura e a instalação de todo o sistema elétrico, que consiste no motor, transmissão e inversor, uma peça responsável pela transformação de corrente contínua para corrente alternada, que, “trocado por miúdos”, é o que permite o fornecimento de energia das baterias até às rodas do veículo (através do motor, transmissão e eixos de transmissão).

Luís Paulo Reis considera que, no que respeita ao transporte rodoviário, a utilização de inteligência artificial pode oferecer grandes benefícios para “automóveis ligeiros e camiões de transporte de carga”, uma vez que permite “termos mais automóveis na estrada, dada a probabilidade menor de serem cometidos erros”.

Apesar do potencial, os dados mostram que esta tecnologia encontra-se ainda em fase de aperfeiçoamento. De acordo com a Administração Nacional de Segurança Rodoviária americana, desde o ano passado até junho deste ano houve cerca de 273 acidentes que envolveram veículos da Tesla que estavam a utilizar o sistema de piloto automático.

Poderá, mais uma vez, tratar-se de uma fase de adaptação. No transporte aéreo, por exemplo, grande parte da navegação é feita com recurso a piloto automático – e com excelentes resultados.

Perigo para a humanidade? Apesar de parecer ainda uma possibilidade distante, o que acontece se chegarmos a um período em que a IA tem uma capacidade intelectual semelhante à de um ser humano?

Para o presidente da APPIA, “temos de ter em conta que, quando atingirmos este estágio de desenvolvimento, estaremos a lidar com um cérebro de enorme complexidade, que tal como mente humana pode propiciar comportamentos inexplicáveis (violência, homicídio), que ocorrem na nossa sociedade”. De acordo com o especialista, independentemente da programação desta tecnologia, estes níveis de inteligência têm riscos associados, “visto que vai ser possível observarmos comportamentos humanos, pelo facto de existir o desenvolvimento de características, como emoções (raiva, alegria, tristeza), que podem provocar diversos tipos de ações”.

Recentemente, no livro A Era da Inteligência Artificial, Henry Kissinger, Eric Schmidt e Daniel P. Huttenlocher manifestaram uma preocupação crescente acerca da utilização de IA no setor militar, onde as ‘lethal autonomous weapons’ (conhecidas como as armas que não precisam que o homem clique no botão / gatilho) demonstraram ser um perigo tão elevado quanto a proliferação de armas nucleares. Os autores concluem que é fundamental que exista um controlo sobre este setor, referindo que “devemos prevenir que as IA operem mais rápido que os decisores humanos e tomem decisões irremediáveis com consequências estratégicas. As defesas terão de ser automatizadas, sem cedência dos elementos essenciais do controlo humano”.