DOHA – Gosto de aeroportos. Gosto do movimento das pessoas inquisitivas, à procura das portas que dão para o avião que as levará para o seu destino. Gosto de me sentar com tempo e ver as crianças que começam a embirrar de sono, os pais que engolem o grito que têm vontade de soltar, os adolescentes que se juntam em redor de uma coluna para ouvirem a música comunitária, a senhora rosada e velhinha que é empurrada numa cadeira de rodas e me sorri num gesto simpático e engelhado de maçã camoesa. Um antigo ditado romano aconselhava: «Sorri. Sorri sempre para os outros. Não é por sorrires para alguém que terás de ser o seu melhor amigo». Este também foi o Mundial dos sorrisos, todos a tentarem serem úteis mesmo que só para criarem problemas, tentei esquecer as indicações que me davam por saber, de experiência feito, que esta é uma terra onde só se diz não quando é mesmo NÃO, se for apenas não de resposta a uma pergunta banal ficam-se pelo sim, pelo talvez, ou pelo encolher de ombros que é o maior favor que nos podem fazer para não darmos por nós, de repente, perdidos entre dunas do deserto em vez de na curva da estrada onde deveríamos apanhar a camioneta.
Há aviões para toda a parte. Se fosse Bernardo Soares a acabar esta frase diria que há aviões para toda a parte menos para a vida não doer, como escreveu sobre os barcos. São mais, no entanto, aqueles a quem a vida não dói. Não vislumbro franceses mas não dou dois passos sem que me cruze com um argentino, camisola às risquinhas, azul-celeste e brancas, estão pela hora da morte, salvo seja, as camisolas, digo, na loja da Adidas boiam a preços escandalosos mesmo que este seja um país de dinheiro escandaloso, basta prestar atenção – até que deixamos de reparar neles – nos jipes Rolls Royce e Bentley que rodam nas enormes avenidas de Doha aos pontapés, conduzidos por uns senhores galunfantes que pensam que são donos disto tudo e, tem piada, são mesmo donos disto tudo. Os argentinos estão roucos. Estiveram loucos. Cantaram no passado domingo, em Lusail, no Estádio Icónico, em uníssono até rebentarem com as cordas vocais e com os nossos tímpanos: «Vamo, vamo, Arrentina! Que tenemo de ganar!». Dizem Arrentina mesmo assim, não Argentina, porque carregam no sotaque porteño daqueles que chegaram e abalaram a Buenos Aires pela boca do Rio de La Plata, a mesma boca que deu nome ao Barrio de La Boca, o bairro da Bombonera, o campo do Boca Juniors, clube do povo, os que fizeram crescer um país imenso que se apaixonou por futebol desde o dia inicial em que dois ingleses, irmãos, Thomas e James Hogg, resolveram realizar um desafio entre os White Caps e os Red Caps, os bonés brancos e os bonés vermelhos, forma de distinguirem um grupo do outro enquanto corriam desenfreadamente lutando por uma bola em direção às balizas erguidas com traves de madeira em cada ponta do Buenos Aires Ground Cricket Club, noutro bairro vizinho, o Barrio de Palermo. Era o dia 9 de Maio de 1867. E, se não fosse a vontade indomável dos manos Hogg, provavelmente esta malta que aqui vejo, de um lado para o outro como baratas tontas, quantos deles sem ideia de terem alguma vez visto a sua seleção ser campeã do Mundo, nunca teria querido saber que no meio das Arábias existe um país minúsculo, do tamanho, para aí, de um terço do Alentejo, que levou o nome de Qatar porque Ptolomeu, mais de quinhentos anos antes de Cristo rabiscou num mapa primitivo Katara (fortificação) em cima da península que parece, assim de cima, um polegar oponível saindo da palma da mão da Arábia Saudita.
A princípio foi o desprezo…
Convencionou-se, pouco antes de o Mundial ter início, que era de bom-tom desprezar o Qatar e o seu torneio. Ora porque era ridículo realizar-se uma prova destas num país tão pequeno, ora porque os qataris são perpétuos violadores dos Direitos Humanos, ora porque ninguém no Qatar quer saber de futebol, ora porque ia fazer um calor dos diabos e iríamos todos morrer lentamente de desidratação, ora porque a família Al Thani, que governa a nação, é contra excessos de intimidade na via pública, ainda por cima se forem de homens com homens e de mulheres com mulheres, ora porque (deu para tudo!) não iria haver cerveja e os adeptos ingleses, alemães, checos, belgas e o diabo a quatro iriam armar batalhas campais em todas as esquinas por terem sede e não gostarem de Budweiser-zero, uma das patrocinadoras do Mundial. Como cantava o Carlos do Carmo estávamos perante um verso em branco e sem futuro. Pois, o povo do Qatar, não os qataris que são apenas cerca de 333 mil, mas os imigrantes que fazem deste um país inimitável, 700 mil indianos, 400 mil bengalis, 400 mil nepaleses, 350 mil paquistaneses, 300 mil egípcios, 265 mil filipinos e por aí fora num azulejo de 2 milhões e 900 habitantes e 55 nacionalidades diferentes, quiseram o seu Mundial, viveram-no com a intensidade de quem tem a certeza de que seria um momento ímpar nas suas vidas, escolheram as suas seleções preferidas (ou em grande parte dos casos os seus jogadores preferidos), vestiram as camisolas (de contrafação, claro!, estamos no centro do universo da contrafação) de que mais gostavam – a Argentina esteve desde o primeiro dia no topo das simpatias! – e festejaram vitórias e derrotas numa comunhão com muito de infantil, de uma pureza desconcertante e de uma ingenuidade encantadora. E não, não havia nos rés-do-chão dos edifícios mais manhosos nenhuns guichets onde um fulano se inscrevesse para ganhar 100 Rials em troca de levar para os estádios as camisolas antecipadamente escolhidas por uma organização maléfica que vivia apavorada com o medo de ver bancadas vazias. A estupidez devia ter limites. Não tem e a Humanidade é que se quilha. De há vários anos para cá que os indianos – utilizo o exemplo que conheço mais profundamente, vários amigos meus vieram de propósito de Goa para ver jogos de Portugal – se apaixonaram primeiro pela Premier League e, em seguida, pelo futebol internacional em geral já que, apesar dos esforços cada vez mais intensos levados a cabo pela Liga Indiana, o campeonato da Índia ainda deixa muito a desejar. Sentem-se com eles à conversa, já agora aqui em Doha, por ser o sítio do momento, e ouçam como conhecem o nome de todos os jogadores e de todas as equipas em que jogam. É como se colecionassem cromos mentalmente. E avançam logo com opiniões, na sua maioria bastante básicas, mas enfim, não vão agora querer que uma gente que antes da entrada deste século não prestava atenção a nenhum outro desporto que não críquete (um bocadinho também de hóquei em campo) se tenha transformado numa gigantesca nação de experts.
Voltemos por momento a Lusail, essa capital do norte, aquela que todos afirmam que virá a ser o futuro do Qatar, urbe absolutamente moderna – na verdade tudo neste país é moderno – de edifícios estrambólicos saídos da imaginação incontrolável de arquitetos tão loucos como o Chapeleiro da Alice no País das Maravilhas. Faz frio! Todos os locais fechados têm o ar condicionado no mínimos não se dê o caso de os visitantes poderem dar razão a quem os avisou que iriam sofrer como num Agosto sevilhano. No país de todas as riquezas, os espectadores privilegiados como nós, jornalistas, não sabem onde gastar o dinheiro: o metropolitano novo em folha é gratuito e chega a todos os estádios; há autocarros eléctricos que saem de dez em dez minutos no Centro de Imprensa Principal e nos distribuem pelos pontos mais marcantes da cidade seja a que horas fora; qualquer um que tenha automóvel utiliza-o como táxi colectivo por uma ninharia por passageiro, para os que, como eu, gostam de comer nos lugares popularuchos, pratos simples de grão com arroz, de biriani de borrego, de couscous de vegetais, uma refeição cumpre-se com dignidade por 10 Rials, algo como três euros, não muito mais. Mundial-de-Todos-os-Jogos, apelidaram-no também. Por via das distâncias foi possível ver dois jogos por dia, ficar com uma ideia minimamente concreta do valor de todas as equipas, testemunhar espectáculos com os ingredientes indispensáveis para considera-los como tal: alegria e tristeza; alívio e drama; sonho e pesadelo; cor e negritude.
No final a alegria…
É bom passear de madrugada pelas ruas e avenidas de uma cidade com a certeza absoluta de uma segurança irrepreensível. A temperatura desce até aos 15 ou 16º, e este descer é se estamos verdadeiramente ao ar livre porque cada local fechado é bombardeado constantemente, 24 horas sobre 24 horas, à custa de uma climatização insuportável. É bom perceber que as gentes de Doha, de Al-Rayaan, de Lusail, de Al-Wakrah, de Al-Khor, gostam das esquinas das suas cidades, dos bancos instalados em pedaços de relva, de se encostarem às árvores raquíticas que parecem ainda mais raquíticas quando espalhadas a esmo por entre prédios que vão para lá dos cem andares. É bom aproveitar o arrebol, momento em que o trânsito ainda é pacífico e não se congestiona como um miúdo birrento a massacrar toda a gente com berros de cláxon. Deito-me geralmente quando o muezzin da mesquita que fica no quarteirão atrás do meu apartamento lança no ar a primeira oração da manhã. Adormeço ao mesmo tempo que Doha acorda, terei muito tempo para retomar o seu ritmo de cidade construída para se bater com Dubai ou Abu Dhabi, das quais sempre foi invejosa, tive um mês para me sentir igualmente de aqui, orgulhoso imigrante passageiro misturado com todos os outros que nunca negaram um sorriso, que nunca deixaram de saudar «Salaam Aleikum, Sir», com uma educação quase pomposa, quase de anfitriões, e por que não?, afinal foram eles que repartiram comigo esta coisa simples que é viver, respirando dia a dia sem esforço até ao momento em que uma avalancha de estreptococos pôs todos a tossir. Bramaram-se alertas contra a Febre dos Camelos, ela viajou descontrolada pelos tubos do ar condicionado, maldito ar condicionado, juro de dedos cruzados como nos livros do Tom Mix que é a única coisa que me condicionou neste tempo em que vivi uma versão muçulmana de mim, abstinência de álcool e tudo e tudo, palavra de honra, na verdade só queria estar aqui e ser mais um igual aos outros, sem que me prestassem grande atenção, podendo passar despercebido não fosse o rectângulo grande e plastificado da acreditação dependurado do pescoço, com foto do trombil ao canto superior direito, que me delatava e provocava, logo, logo, a curiosidade dos que viajavam no banco do metropolitano a meu lado desejosos de saber de onde vinha e do que pensava desta terra sua, mesmo que por empréstimo. Olhem, senti-me em casa. Acreditem que vem do coração. «Shukram!».
É, de certa forma, um verso em branco e sem medida, este que brotará de um Campeonato do Mundo amaldiçoado e que acabou por ser um dos mais competitivos e bem jogados de sempre. Um estádio já foi desmantelado e não tardará a ser despachado para Montevidéu onde o reconstruirão à moda das peças de lego. Outros verão reduzido o número de bancadas e serão enxertados com ginásios, clínicas, centros habitacionais e comerciais. Não aos elefantes brancos! Mesmo que, não tarda, o Qatar volte a estar no centro da festa do futebol ao receber a fase final da Taça da Ásia, troféu que a selecção qatari tem em mãos por ter sido a vencedora da última edição.
As horas escorrem depressa no mostrador electrónico instalado na minha frente e que avisa os números dos voos, as companhias de aviação e os seus destinos. Caminharão todos os estrangeiros para oeste? Foram quatro países do oeste (em relação ao ponto em que me encontro) que atingiram o final definitivo da competição, Argentina, França, Croácia e Marrocos, por esta ordem de classificação, mas parece que só existem argentinos tão poucos são os diálogos que escuto em francês, só mesmo castelhano com sonoridades de milonga, todos os argentinos de peitos enfunados de orgulho – não farei comentários sobre os enfunados peitos das argentinas -, fazem lembrar, pelo meio desta indisfarçável vaidade, o velho dito embirrento dos brasileiros: «Grande negócio é comprar um argentino pelo que ele vale e vendê-lo por aquilo que ele acha que vale!». Vá. Não sejais mesquinhos, amigos meus, diria o Vinícius, rei do imperativo negativo, essa mecânica tão pequenina como maravilhosa da gramática portuguesa. Valem muito nos dias que correm estes argentinos que correm para os aviões que os esperam, que viram correr os seus «muchachos, compañeros de vida», de Gardel, francês de Toulouse nascido Gardès, senhor do tango e morto num acidente aéreo, cruzes!, cala-te boca, recorde-se ainda como num filme, que só mesmo há bocadinho viu descer pela tela abaixo o termo The End, toda a emoção da final de Lusail, a poderosa França dos jogadores altos como arranha-céus, quase todos negros de baquelite, a selecção mais africana de todas as Áfricas, batida pela grinta da Argentina ainda de luto por Maradona, parecia que seria impossível ser campeã do mundo sem Maradona, mas Diego emprestou o seu pé esquerdo a Lionel Messi e disse-lhe: «Vai! Leva-o e faz de conta que és Deus, tal qual eu fiz, vais ver que ninguém desconfia». E toda a gente à face do planeta redondo e apenas ligeiramente achatado nos pólos se convenceu, nem que fosse por hora e meia e mais meia hora e mais penáltis e tudo, de que Deus afinal é canhoto. Lá longe, em Buenos Aires, existe um rio. O Carlos sabia. O Carlos cantava as letras que caem nestas páginas a propósito: «O canto em vozes juntas, vozes certas/Canção de uma só letra/E um só destino a embarcar/No cais da nova nau das descobertas». As novas naus são cilíndricas, têm asas, e chamam-lhes aviões. O poema do Qatar e do seu Mundial chegou ao fim mas existe uma esperança acesa atrás do muro de que deixe de ser um país olhado com a desconfiança que se emprega nos malditos e ganhe o seu espaço na vontade dos que para cá caminham. Ou simplesmente um verso em branco à espera do futuro que já começou e sopra a todo o pano. Depressa. Por favor! Deem-me um ponto final. Obrigado. Ele aqui fica. E aqui vos deixo se não ainda perco o avião…