27 de Dezembro de 1954. Esses tão desprezados colegas do Espírito Santo…

Têm muito que se lhes diga esses bicharocos que nas vielas do Bairro Alto eram conhecidos por ratos com asas – e a malta mais nova, que jogadava à pedrada, dava às pedras da calçada o nome de pombos sem asas. Já a sua vida conjugal e o amor filial são nitidamente os seus pontos…

A malta do Bairro Alto, antes de este ser invadido por “camónes” que gostam de andar de um lado para o outro com garrafas de cerveja de litro, chamava-lhes ratos com asas (também chamavam às pedras das calçadas pombos sem asas), aos pombos quero dizer. Havia os mais vivaços, a crescer a peitaça para as pombas, armados em D. Juans da passarada, e havia os que, entontecidos de doenças, tombavam lá do alto dos beirais para o empedrado onde eram distraidamente esmagados pelos pneus dos automóveis.

Muitos sempre consideraram os bandos de pombos como uma praga. Até porque não se faziam esquisitos na hora da cagarem nos lençóis e restante roupa branca que se dependuram nas janelas a secar. Algumas velhinhas mais bondosas espalhavam-lhes migalhas de pão, criando um caharivari de asas a abrir e a fechar e de penas por todo o lado. Havia até um figura do Bairro conhecida por, com o engodo das migalhas e com aquela confusão toda em seu redor, deitar o canto do olho ao mais gorducho, torcer-lhe o pescoço, e levá-lo para casa, num saco de plástico, já com o destino traçado de canja para a noitinha.

Certo dia, num dos vespertinos da capital, a direcção do periódico decidiu dar um espaço muito razoável à cinegéticia. O dia, já o adivinharam, até porque vem no título, foi o 27 de Dezembro. O ano, 1954. Era um daqueles espaços que os jornais concediam para quem estava interessado em aprender alguma coisa para além de notícias falsas e coscuvilhice. “Pombos da Nossa Terra”, chamou-se o escriba. Com um cerro toque de orgulho nacional que só serviu para esfregar o nome da pátria com um ligeiro toque de limpa-pratas Coração, que vinham numas latinhas bastante jeitosas.

O cientista. Para que os pombos não fiquem por aí dependurados sem eira nem beira, recorreu-se à sabedoria de um especialista alemão, o dr. Brehm, homem que sabia dessa bicharada alada como ninguém. Escrevia o homem uma frase cheia de pompa e circunstância, capaz de fazer inveja ao grande Elgar da marcha: “Os pombos, no seu todo, têm mais encantos e atractivos, e desde os tempos mais remotos foram sempre o emblema de todas as qualidades, chegando ao estatudo de símbolos espirituais”. E foi aqui chegado que soltei para com os meus botões: “Olhem, o Espírito Santo que o diga!”.

Voltei, atento, à leitura do jornal e às diatribes de Herr Brehm. Não tardou a entrar pela coluna classuficativa do velho Lineu para se lançar na apologia do pombo torcaz, raça que abunda junto dos cabos da Roca, de Espichel e perto de Sines. Bem mais saudáveis do que os do Bairro Alto, como está bem de ver. Para aqueles que se dedicam à sua observação, é um emigrante. Vai até ao noroeste da Ásia, quando o arrefecimento das temperaturas, o incomodam na atmosfera nacional. “Não se lhes pode negar elegância, nem deixar de se lhes admirar as provas de mútua afeição que uns aos outros devotam”, ia debitando o especialista. Namoradeiros, portanto. Com um se… “No que respeita à felicidade conjugal tão afamada nas pombas, não está ela ao abrigo de suspeitas, por sinal que bem fundadas. E fácil também é aduzir provas que desmintam o amor que devotam à sua progenie”. Ora. Eis-me desiludido. O dr. Brehm, da imperial Alemanha, tinha um certo toque de machismo no que aos pombos dizia respeito. Mas, vendo bem, porque não? Francamente nunca me teria passado tal coisa pela cabeça.