por Luís Ferreira Lopes
Ex-Assessor para Empresas e Inovação do Presidente da República e Ex-Editor de Economia da SIC / SIC Notícias
Mariupol, (un)lost hope é um murro no estômago em forma de documentário sobre o ataque russo contra a população de Mariupol, no primeiro mês da guerra contra a Ucrânia. Vi esta impressionante reportagem na RTP 3, dois depois do Natal de um ano duro para boa parte da população portuguesa e mundial. Enquanto isso, por terras lusitanas, os tradicionais sonhos e os votos de Boas Festas tinham o sabor amargo da polémica em torno de uma secretária de Estado do Tesouro (entretanto, afastada) que recebeu uma indemnização de meio milhão de euros da TAP, da nova injeção pública de quase mil milhões naquela companhia aérea intervencionada pelo Estado (leia-se, pelos contribuintes portugueses) e também da notícia do apoio do governo espanhol à população afetada pela inflação, através da isenção de iva da taxa reduzida sobre os produtos essenciais.
Já pouco se estranha no país das Guerras do Alecrim e da Manjerona (peça de António José da Silva, do século XVIII, mas sempre atual) e da estranha mansidão de parte do povo sobrecarregado de impostos que vai sendo depenado, qual ganso da famosa imagem de Jean-Batiste Colbert… Escrevia o ministro de Luis XIV, o Rei Sol, que «a arte da tributação consiste em depenar o ganso de modo a obter a maior quantidade de penas com o menor volume de grasnidos». Mas, voltemos a outras penas, neste caso da martirizada população ucraniana.
O diário da jornalista Nadia Sukhorukova relata, pela voz de três mulheres e dois homens, a dura vida da população daquela cidade estratégica do Mar de Azov, na fase inicial da brutal invasão de Vladimir Putin contra populações indefesas, maternidades, hospitais, prédios, teatros e todos os locais civis que albergavam os cidadãos daquela que já foi uma das maiores cidades daquele país do leste europeu. O diário de Nadia, que serve de base ao documentário televisivo, humaniza os números dos confrontos militares e as análises geopolíticas que todos lemos e ouvimos ao longo de 2022. O poder da palavra e da imagem relativiza, em parte, as nossas queixas e tudo o que de negativo (ou medíocre) ocorreu em Portugal, na Europa e no mundo, no estranho e louco ano da pós-pandemia e do suposto regresso à normalidade.
Naquele documentário, o olhar e o rosto belo de uma cidadã, agora refugiada na Áustria, revela a dor pela perda do seu filho e traduz o desespero das pessoas na fuga aos bombardeamentos por terra, ar e mar, numa aparente frieza que nem a sua profissão de intérprete terá conseguido treinar. A violência gratuita sobre civis e a clara intenção de Putin de exterminar centenas de milhar de pessoas da outrora bela cidade de Mariupol é um dos tristes episódios dos crimes de guerra iniciados em 2022, com efeitos humanitários, sociais e económicos acima do esperado que continuarão a marcar as nossas vidas em 2023.
Apesar das soluções e sanções políticas e económicas que foram sendo encontradas por Bruxelas e Washington, em especial para apoiar a Ucrânia e defender a União Europeia da dependência energética do gasoduto russo, as famílias e as empresas sentiram na carteira e na pele, no ano que agora termina, as consequências da subida do preço dos produtos energéticos – o que já durava desde a pandemia covid-19 –; da escassez de matérias-primas, com destaque para os cereais provenientes do leste europeu; do aumento da inflação para níveis registados no início da década de 90 do século passado; da consequente subida das taxas de juro dos bancos centrais, com reflexo imediato nas prestações dos empréstimos; e na revisão em baixa do cenário de crescimento, com previsões de recessão ou estagflação na maioria dos países europeus e ocidentais.
Apesar da guerra na Ucrânia e das ditaduras religiosas no Irão e no Afeganistão, uma parte dos europeus ainda viveu 2022 com a euforia do alívio das restrições causadas pela pandemia: as pessoas viajaram, consumiram mais, voltaram aos hotéis, restaurantes, bares e discotecas, mesmo pagando tudo mais caro. Outra parte da população europeia e portuguesa não teve margem financeira para o dito regresso ao normal e sente cada vez mais o peso da fatura da energia, alimentação, acesso à habitação, receando o que vem aí e desejando que 2023 passe depressa. Infelizmente, é expectável que o agravamento da situação económica e financeira, no primeiro semestre do novo ano, atinja toda a população mundial. Mas o que é isso quando comparado com os efeitos do ‘general Inverno’ na depauperada população da Ucrânia?
No caso concreto da zona euro e de Portugal, é tempo de redobrada prudência e de grande pragmatismo na gestão da coisa pública e das finanças pessoais. É público que muitas famílias portuguesas já estão a ir buscar dinheiro às poupanças para fazer face ao brutal aumento do custo de vida. Infelizmente, devemo-nos habituar a esse cenário de recessão ou estagnação (na melhor das hipóteses), esperando que quem gere o Estado consiga reduzir a dívida pública, conter o défice orçamental e fazer despesa pública e investimento com máximo de racionalidade possível, sob pena dos grasnidos aumentarem de tom e intensidade.
É precisamente nestes momentos de crise que os povos esperam clarividência, coragem, energia e sensibilidade social das suas lideranças políticas, em todos os orgãos de soberania do Estado. Em Portugal, as linhas de financiamento às empresas e ao investimento público, através do PRR e do quadro 2030, são um poderoso instrumento para estimular o crescimento (ou atenuar a recessão, na conjuntura difícil de 2023), mas é preciso ir além dos instrumentos operacionais ou das almofadas sociais e delinear uma estratégia clara de fomento dos setores mais competitivos da economia que premeie o mérito dos projetos, em vez de alimentar teias de clientelas político-partidárias e, com isso, incendiar populismos no contexto de convulsão social. Depenar o ganso sem grasnidos é uma arte que não dura para sempre, por mais programas de debate sobre futebol e comentadores de tudo que alguém invente para desviar as atenções … E, entretanto, mulheres, crianças e velhos de Mariupol e das outras cidades da Ucrânia sofrem com o horror do Stalin do século XXI.
Será assim tão difícil planear e executar com maior ambição, mesmo em novo contexto de guerra, após o período duro da pandemia? Num país com enorme potencial de crescimento em diversos setores, além do turismo, e com um povo que é trabalhador quando bem gerido (em Portugal e na Diáspora), estamos condenados a continuar a assistir, de braços cruzados, à sangria de talentos – jovens e menos jovens? No país do sol e da praia, por quanto tempo mais continuaremos a falar sobre o potencial da eficiência energética, quando boa parte das habitações lusitanas não está minimamente preparada para o frio? Teremos noção do que é realmente frio, neste inverno impiedoso para a Ucrânia?
No país dos unicórnios, das start-ups e empresas tecnológicas que deveriam ser um orgulho nacional, o que é preciso para avançar a sério com a propalada transformação digital, em especial nas pequenas e médias empresas (PME)? Os líderes políticos têm ido realmente ao terreno (hoje cada vez mais pantanoso) e essas deslocações têm tido efeitos positivos visíveis para as populações? Conseguirão tornar as agendas económicas verdadeiramente mobilizadoras? No documentário emitido dia 27, baseado no diário de Nadia, uma jovem mãe ucraniana relata as condições em que deu à luz, num hospital sob bombardeamento. Com o seu bebé nos braços, e depois de tanto sofrimento, afirma que a sua vontade é voltar ao seu país e ajudar a reconstruir a Ucrânia. Este é, de facto, um tempo de reconstrução, de repensar modelos, estratégias e táticas – e atuar rapidamente. Numa Europa cada vez mais envelhecida, num país que já vive num perigoso inverno demográfico (como é caso de Portugal), bem precisamos dessa atitude de Reinvenção e de Esperança – que nunca morre.