Olhei pela janela oval do avião que descrevia uma curva pronunciada e só por acaso não fiquei cego. Jamais vira um azul assim se não nos olhos fascinantes da minha tia Filomena, aqueles olhos azul-Olival que ainda hoje me doem só de pensar neles. O Índico fez tudo o que esteve ao seu alcance para se tornar inesquecível. Fui e voltei. A sensação ficou presa na memória como se num beco sem saída. Depois o aparelho aterrou suavemente em Malé, carreguei com a minha pequena mala cheia de livros e de camisas para o hotel mais barato que encontrei, pus a Nikon ao ombro e parti atrás das imagens. E das histórias. E da lenda. Encontrei todas. Mas as únicas em que realmente posso acreditar são as imagens, presas em negativos porque o tempo passa e eu não, continuo a meter o rolo na máquina e a disparar só pela certa porque um negativo estragado, desfocado, custa hoje em dia o preço do indicador que carrega no botão que lhe dá vida.
Um dia, um dia qualquer de um tempo sem tempo, Kolmale, um cingalês, natural do Sri-Lanka, portanto, nesse tempo sem tempo em que o Sri-Lanka ainda não fora Ceilão, ou Taprobana, percorria um caminho por entre ilhas e ilhéus e deparou-se como uma praia de areia branca como neve, o que para ele não significava coisa nenhuma porque desconhecia a existência da neve. Kolmale não viajava sozinho. Remava a sua canoa embeiçado pela mulher de traços exóticos que, na proa, baixava volta e meia a mão para a mergulhar na água morna, assustando os peixes que se escondiam na sombra da quilha. Era a filha do rei do Sri Lanka: a mulher mais bela daquela embarcação simples que só transportava duas pessoas. Por isso, quem me lê dirá: «Parabéns à prima. Que interessa ser a mulher mais bela de uma barcaça onde só estavam uma mulher e um homem?». E eu, por minha vez, nego solenemente que nessa canoa só viajassem uma mulher e um homem! Nela ia também o sonho. Um sonho azul, tão, tão azul como o mar e como o céu que lhe ficava por cima. E, assim sendo, não há lugar para o menoscabo. A princesa do Sri Lanka era bonita como as faces mais belas do planeta Terra.
Kolmale encontrou uma baía a seu gosto. Desembarcou e fez de si próprio sultão de um país inexistente. Um país que, ele ainda não sabia porque não tivera tempo de visitá-las todas, tinha mil cento e noventa e seis ilhas. Assim mesmo, por extenso, porque as ilhas eram em extensão. Faziam uma fileira por entre as ondas paralelas à Costa do Malabar.
De onde veio a maldade
Não há lendas sem maldade. E sem transportadores infames dessa maldade. O paraíso de Kolmale foi, pouco depois de ser paraíso, tomado de assalto de piratas que vinham de Kerala, precisamente na Costa do Malabar, logo em frente. Tudo o que os homens que seguiram o sultão das Maldivas – as ilhas que ganharam o nome inicial de Dhivehi Raajjeyge Jumhooriyya, ou Ilhas Habitadas Pelo Povo Dhivehi – construíram foi destruído. Desde os templos às mais banais das barracas com telhados de folhas de coqueiro. Mas os homens maus que perseguiram Kolmale não tardaram em encontrar um inimigo que, pouco a pouco, ia tomando conta de todo o Índico, da África à Arábia, da Arábia à Índia – vinha do ponto mais ocidental da Europa em caravelas cujas velas brancas exibiam a cruz vermelha do Cristo. Entre 1558 e 1573 tomaram conta das rotas entre as ilhas, desfizeram os grupos de piratas, e estabeleceram-se naquilo que acreditaram ser uma versão azul do paraíso. Estabelecidos em Goa, na costa, trataram de explorar o comércio entre as ilhas e o continente. Como qualquer Adão, abandalharam-se. Vocês conhecem Adão? Um fraco que trincou a maçã para obedecer à vontade de Eva? O primeiro homem a desperdiçar o autêntico Paraíso? Pois os portugueses foram como Adão e deitaram o Paraíso pela borda fora das suas caravelas. Por maldade, também. Insatisfeitos por ocuparem as Maldivas e as suas praias de areia branca que refletia os raios de sol, pretenderam fazer dos descendentes de Kolmale seus escravos. Ah! Não há homem mais livre do que aquele que vive recluso na sua ilha. Sabe que terá de dar a vida por ela a qualquer momento. E, quando o momento chegar, estará absolutamente disposto a isso. Os portugueses que o digam quando um fulano furibundo resolveu amaldiçoá-los a todos por inteiro. Muhammad Thakurufaanu Al-Azam foi o cabecilha dos revoltosos. Os portugueses foram expulsos sem piedade Não sobrou nenhum. E Al-Azam ainda é hoje herói dos heróis das Maldivas. Depois, como sempre acontece, tiranos tomaram o lugar de outros tiranos, Vieram os ingleses, mais brutos, mais sanguinários. Dispostos a instalar a mortandade, ficarem para sempre com a exploração das riquezas marítimas das ilhas. Só em 1965 é que as Maldivas conseguiram declarar a sua independência. E pôr fim à prepotência do Império Britânico, aquele no qual o sol nunca se punha. Algo muito pouco confortável para quem tem necessidade de dormir.
A filha de Omar
Vamos retornar no tempo. Muitos anos antes dos cingaleses terem começado as lutas pelo poder nas Maldivas. Houve sempre uma queda para os nomes compridos naquele lugar do universo. Em 1306, subiu ao trono das Ilhas Habitadas pelo Povo Dhivehi um homem chamado Omar, mas não só. Foi Omar I, sultão, mas tinha, de nome completo, Al-Sultan Abul Fath Jalaaluddin Omar Veeru Siri Abaarana Mahaa Radun. Enquanto dava as minhas passeatas por Malé, encontrei vários registos desta figura no mínimo capaz de provocar cãimbras na língua de qualquer atrevido que se lance na fascinante tarefa de o dizer de uma tirada só. Malé é uma cidade pequena que ocupa uma ilha por inteiro. Percorre-se pacatamente de norte a sul e de este a oeste pelo meio das suas casas baixas e dos minaretes das suas mesquitas. Omar sucedera a seu pai, Al-Sultan Salis Kalaminjaa Siri Meesuvara Mahaa Radun, e foi por sua vez, após um reinado pacífico e um tudo nada aborrecido – também há que reconhecer que além de apanhar sol e de dar uns mergulhos não há grande coisa para fazer nas Maldivas, e ainda bem que, sempre que lá fui, me entretive a gastar rolos de fotografias – substituído pela sua filha Al-Sultana Khadeejah Sri Raadha Abaarana Mahaa Rehendhi, popularmente tratada por Khadeejah das Maldivas.
Muito provavelmente, e estou aqui a escrever um crónica ligeira, própria de uma véspera de Ano Novo e não um naco enciclopédico que acabaria, inevitavelmente, por ser uma grandessíssima estucha, como diria o Alencar d’Os Maias do divino Eça, Al-Sultana Khadeejah Sri Raadha Abaarana Mahaa Rehendhi foi uma das figuras mais curiosas da história desse arquipélago maravilhoso que os portugueses não conseguiram manter em sua posse por muito tempo. Sobretudo porque tinha um feitio bastante particular e um gosto especial por fazer entornar sangue pelas ruas de Malé. Vejam bem: pelo facto de ser mulher não ascendeu imediatamente ao trono após a morte do pai. Essa honra coube ao seu irmão mais novo Al-Sultan Ahmed Shihaabuddine Sri Loka Adheehtha Mahaa Radun, algo que a desagradou profundamente pois considerava-o um fedelho sem princípios e sem juízo. Mas por falar em falta de princípios, a sultana foi, nesse ponto de vista, a mais requintada da família, como já vamos ver.
Sangue entre azul-turquesa
Khadeejah Sri Raadha Abaarana Mahaa Rehendhi conseguiu puxar para o seu redor uma série de pessoas bastante influentes na política das ilhas que era muito dependente, como é natural, do poder de alguns tiranetes que funcionavam como governadores das suas ilhotas, por mais minúsculas que fossem. Apoiada nessa força, tratou de despojar o irmão do trono e de o exilar no atol de Haddhunmathi, um grupo de 82 ilhas das quais 75 não são habitadas. O mar podia ser muito bonito, muito azul-turquesa, os recifes de corais ainda são, hoje em dia, fascinantes para quem visita as Maldivas mas, decididamente Ahmed Shihaabuddine Sri Loka Adheehtha Mahaa Radun não se deu lá bem. Nos primeiros dias do ano de 1347 o seu cadáver foi encontrado a boiar no meio de um cardume de peixes-balão e de um não mais acabar de medusas. Inchado, negro de hemorragias internas, destoava nitidamente da paisagem geral.
Percebeu-se de um dia para o outro que a mana mais velha, Khadeejah Sri Raadha Abaarana Mahaa Rehendhi, estava mais do que pronta para ocupar o seu lugar, sobretudo quando surgiu numa cerimónia cheia de pompa e circunstância à frente de um exército de mais de mil soldados, todos eles, ou quase, vindos da Costa do Malabar. Mercenários, obviamente.
Vamos lá introduzir mais um desses nomes intermináveis a esta crónica que, mais uma vez sublinho, é apenas uma crónica: Abu Abdullah Muhammad ibn Battutah. Ibn Battutah, como ficou reduzidamente conhecido, até por nós, portugueses, era um berbere do Magreb e um viajante compulsivo. Viajava por toda a parte do norte de África, pelas Arábias, e atingiu a Índia, Dizem os coca-bichinhos do numerário que só por sua conta calcorreou mais de 117 mil quilómetros, algo que o fez andar bastante mais do que o mítico Marco Polo. Não sou de apostas, não vou meter nem um tostão nessa disputa. Que aliás, nesta caso, nem vem a propósito. Importante foi aquilo que escreveu quando desembarcou nas Maldivas: «Uma das maravilhas destas ilhas é o facto de ser governada por uma sultana de nome Kadeejah. Kadeejah, é mulher do grande orador, aqui apelidado de khatib, Jamal-ud-din, que ela promoveu a vizir. Dessa forma, Jmal segura as rédeas do poder mas tem ordens bem claras para que tudo o que seja feito assuma a maternidade de Kadeejah. Assim, todas as ordens governamentais são inscritas em folhas de palmeira com um pedaço de ferro parecido com uma faca: O papel só serve para guardar tiradas do Corão. Além disso, seguindo o exemplo da sua sultana, e ao contrário do que acontece com a grande maioria das mulheres muçulmanas, aqui têm a cara a descoberto e apresentam um orgulho muito forte nessa sua posição».
Mohamed el-Jameel Sri Bavana Sooja Mahaa Radun (Jamalud-din, como lhe chamou Ibn-Battutah) afeiçoou-se ao poder e teve o descaramento de afastar a mulher do cargo de sultana, gesto que provocou em Khadeejah Sri Raadha Abaarana Mahaa Rehendhi uma tal dose de raiva que três dias após a sua atitude belicosa estava morto, cortado em pedaços e entregue à voracidade dos tubarões e outro habitantes aquáticos igualmente ávidos por carne humana. O que não quer dizer que Khadeejah tenha aprendido a lição por completo. Ainda a populaça não se refizera da violência da sua sultana e já esta organizava uma boda gigantesca para festejar segundas núpcias com um mamífero de nome Abdullah I Sri Dhanmaru Aadheettha Mahaa Radhun, tipo muito pouco aconselhável e que, na verdade, só se sujeitara ao casório por uma questão de interesse. Ninguém se espantou, por isso, que a história se repetisse e que o tal de Abdullah tenha feito a mesmíssima brincadeira de tomar o poder, encostando a esposa a funções meramente exibicionistas. Burro! Tinha obrigação de saber com quem quem se desposara. Acabou por ter o destino do seu antecessor, depois de dois anos a alardear a sua autoridade de sultão das Maldivas.
Como que a festejar a entrada no novo ano de 1376, Kahdeejah predispôs-se a nova viuvez. Deu ordens para assassinar Abdullah sem grande piedade por parte dos executores que o fizeram passar um bastante mau bocado. Depois, feito em nacos deglutireis, foi mergulhado nas águas azuis-turquesa já bastante manchadas de vermelho-sangue. Não voltou a tomar marido. Manteve-se no poder absoluto até 1380, ano em que morreu ostentando o título de Rainha das Doze Mil Ilhas. Não faço ideia de quem terá sido o responsável pela contabilidade, mas no seu reinado com muito de absurdo havia gente para todas as funções. E foi tão admirada pelas suas súbditas pela forma como despachou os maridos que, nos cinco anos seguinte, surgiram nas Maldivas duas mil mulheres chamadas Rehendhi em sua homenagem.