Nem todos os filmes são discretos nas suas críticas. Por cada Este País Não É para Velhos (2007), cuja violência funciona como uma metáfora para a “reforma”, existem exemplos mais espalhafatosos, como foi o caso de Não Olhem para Cima, filme lançado na Netflix na véspera de Natal de 2021, uma sátira explicita sobre a indiferença do governo, nomeadamente do ex-Presidente dos Estados Unidos, Donald Trump, perante o aquecimento global.
Na véspera da véspera do Natal do ano passado, dia 23 de dezembro, os gigantes do streaming voltaram a agraciar o público com uma nova comédia, Glass Onion, o mais recente filme de Rian Johnson, uma sequela do aclamado Knives Out: Todos São Suspeitos (2019), com o título “emprestado” de uma música com o mesmo nome dos Beatles, do “White Album”, de 1968.
À semelhança de Não Olhem para Cima, que contava com um personagem que era um excêntrico magnata das tecnologias, Peter Isherwell, interpretado por Mark Rylance, em Glass Onion encontramos Miles Bron, que ganha a vida através de Edward Norton (que conhecemos de filmes como Clube de Combate ou América Proibida), um CEO bilionário de uma empresa de tecnologia que convida o seu grupo de amigos para passar o fim de semana a jogar um “elaborado” jogo de mistério.
Ora, não foi preciso muito tempo até os espectadores do filme começarem a traçar paralelos entre Bron e um bilionário das tecnologias da vida real. Estamos a falar do fundador da Tesla e da SpaceX, o novo dono do Twitter, Elon Musk.
Apesar de alguns fãs do primeiro filme terem elogiado o humor e reviravoltas do argumento, houve quem lançasse as suas garras ao realizador por, “alegadamente”, estar a criticar o famoso empreendedor de origem sul-africana.
“As políticas de Rian Johnson”, começou por explicar o advogado e comentador político conservador Bem Shapiro, na sua conta pessoal de Twitter, “são tão preguiçosas quanto a sua escrita. A sua opinião sobre o universo é que o Elon Musk é um homem mau e estúpido, e que qualquer um que goste dele – nos meios de comunicação, na política ou na tecnologia – está a ser pago por ele”, escreveu.
Perante estas acusações, o próprio realizador saiu em sua defesa afirmando que Musk não serviu de inspiração para a personagem interpretada por Edward Norton.
“Isto é muito estranho. É muito bizarro. Espero que não exista nenhum departamento secreto de marketing da Netflix que esteja a financiar essa aquisição do Twitter”, disse Johnson, em entrevista à Wired, explicando que se tratou de uma coincidência o filme ter estreado na altura em que o bilionário estava a meio do processo de comprar o Twitter.
“Existem muitos traços gerais sobre este tipo de bilionário da tecnologia que foram diretamente para [o filme]”, esclareceu, acrescentando que nota uma “estranha relevância” no filme tendo em conta o contexto em que ele surgiu. “Um amigo meu disse-me: ‘Parece que o filme foi escrito esta tarde’. Isto foi apenas um acidente horrível”.
A vingança no grande ecrã No mesmo ano em que Musk comprou a rede social do pássaro azul por 44 mil milhões de dólares (cerca de 41,7 mil milhões de euros), efetuou mudanças altamente criticadas, despediu centenas de trabalhadores e implementou um sistema de pagamento para verificar a identidade das contas, e registou uma perda histórica da sua fortuna, aproximadamente 132 mil milhões de dólares (125 mil milhões de euros), foi-nos servida uma rica bandeja de conteúdo audiovisual que tinha um claro alvo: os mais abastados.
Apesar do alvoroço que Glass Onion gerou nas redes sociais, este até foi das críticas mais ligeiras, especialmente se compararmos a filmes como o Triângulo da Tristeza de Ruben Östlund, que colocou um grupo socialites num cruzeiro nauseante (numa das cenas mais marcantes do cinema de 2022), O Menu de Mark Mylod, onde um grupo de clientes “exclusivos” vê ser-lhes servida uma ementa “infernal”, na série da HBO, ou White Lotus, de Mike White, com os hóspedes de um resort luxuoso a sofrerem umas férias “inesquecíveis”. Já em Tár assistimos à “queda” da maior maestrina do mundo, enquanto O Convite e Barbarian são filmes de terrror onde descobrimos quão baixo a elite pode descer para manter a sua fortuna.
Obviamente, esta não foi a primeira vez que o cinema e a televisão decidiram “vingar-se” das elites no grande ecrã. Basta recordar o trabalho de realizadores como Charlie Chaplin, em Tempos Modernos (1936), sobre a desumanização do trabalho na indústria moderna, ou, mais recentemente, Bong Joon Ho, seja no seu filme vencedor de Óscar, Parasitas (2019), com uma família pobre a ocupar a casa de uma abastada, seja em Snowpiercer – Expresso do Amanhã (2013), uma ficção cientifica onde a humanidade está toda agrupada dentro de um comboio, que divide cada classe em carruagens.
No entanto, numa altura em que as divisões sociais e económicas foram acentuadas pela pandemia da covid-19, parece natural este tipo de filmes estarem a dominar o imaginário dos espectadores e os nossos ecrãs.
“Enquanto os ricos ficam mais ricos e os pobres cada vez mais pobres, o público aumenta o seu apetite por contos que ridicularizam os ricos, revelando a sua futilidade, as suas obsessões materiais e a insipidez das suas personalidades”, escreve Calum Russell na Far Out Magazine.
“Numa altura em que o mundo parece estar numa espiral descendente rumo ao desespero, com os super-ricos a assistir a partir de plataformas de ouro maciço, estes filmes agem como um lembrete catártico da falibilidade dos ricos”, argumenta o crítico. “Apesar da sua aparência de deuses financeiros, eles, no fundo, são apenas humanos. Assim como nós, eles podem ser vítimas da sua própria ganância, podem sofrer com o seu próprio ego e escorregarem nos seus próprios excrementos. Rir do seu poder, autoridade e importância é rir do absurdo da própria humanidade; é um exercício catártico imperativo”, concluiu.