Já se sente o cheiro a estufado na estreita estrada que vai dar à «casa da Avó Maria» – como todos lhe chamam –, em Deixa-o-Resto, uma pequena aldeia portuguesa localizada no Alentejo. Outrora um café, aqui, regularmente, a família e amigos juntam-se para a caça ao javali e o consequente almoço que se estende até ao jantar. Os homens chegam mais cedo para caçar o bicho. O resto dos convivas evita esse momento, chegando estrategicamente a horas para apenas degustar a maravilhosa carne confecionada pelo senhor António Mirante.
O neto, João Pedro, de 29 anos, começou a caçar aos seis anos por incentivo dos mais velhos. Primeiro com a pressão de ar e armadilhas «como se fazia antigamente». Em 2013, ‘migrou’ para as armas de fogo. «Caço por causa do meu avô. Foi ele que me passou a paixão. Comecei em pequeno e nunca mais abandonei a atividade. Até tenho passado este gosto a amigos que agora caçam comigo», conta o jovem ao Nascer do SOL, acrescentando que gosta de ver «a inteligência dos cães no campo».
Mas se antes, numa noite, caçava um ou dois, nos últimos dois anos, o também pescador por paixão revela que às vezes chega aos sete. Depois disso, «arranjamos os javalis e guardamos na arca a carne que está a mais, para não se estragar». «Está a tornar-se insustentável. Já os vemos nas estradas da Vila Nova de Santo André, nos canteiros das pessoas, nas passadeiras, rotundas, etc.», conta.
Uma ‘praga’
Sabemos que os javalis são uma espécie típica e fundamental nos nossos ecossistemas, com elevado interesse socio-económico pela sua importância cinegética. Por conseguinte, são uma espécie que deve ser preservada e gerida. Contudo, ao mesmo tempo, são e cada vez mais uma espécie problemática, graças aos perigos e prejuízos que acarretam quando em densidades excessivas – situação que se torna cada vez mais frequente tanto em Portugal como na Europa em geral.
«A elevada prolificidade (capacidade reprodutiva), enorme capacidade de adaptação e a ausência de predadores em grande parte do território levam a este aumento exponencial dos javalis e ao consequente crescimento dos problemas», explica ao Nascer do SOL João Carvalho, secretário-geral da Associação Nacional de Proprietários Rurais – Gestão Cinegética e Biodiversidade (ANPC).
Segundo João Carvalho, estes têm causado enormes prejuízos à agricultura, biodiversidade e acarretando sérios perigos para as populações (sobretudo pelos acidentes rodoviários que provocam, pela transmissão de doenças, etc.) e para as espécies domésticas e pecuárias (transmissão de doenças).
«Esta expansão leva a que os javalis estejam a colonizar territórios cada vez mais próximos dos humanos, começando pelas zonas periurbanas (Sintra, Arrábida, Costa Caparica, etc.) até às zonas urbanas como são os avistamentos frequentes em várias cidades e vilas do País». Basicamente, conta João Carvalho, os javalis buscam territórios e recursos alimentares nestes locais menos habituais e aí se instalam até que medidas sejam tomadas para reduzir ou eliminar os problemas que causam, «necessariamente pelo controle populacional com o abate por métodos de caça ou pela captura e posterior abate».
Por isso, estes animais, tanto se alimentam em campos de milho ou hortas, como depois passam a alimentar-se de ovos ou crias de determinadas espécies selvagens que criam no solo. No seu comportamento alimentar, foçando os solos em busca de invertebrados ou plantas bolbosas, «acabam também por revirar a camada de solo orgânico causando muitas vezes danos em vegetação com elevado estatuto de conservação, expondo as raízes, por exemplo».
«Este mesmo comportamento leva também a enormes prejuízos em zonas urbanas e periurbanas, como são campos de golfe, jardins e zonas ajardinadas, revolvendo e destruindo enormes extensões de relvados apenas para procurar comida», explica o secretário-geral da ANPC.
Os riscos sanitários que os javalis comportam são igualmente uma enorme preocupação: «Quer no que toca a zoonoses (doenças transmissíveis ao homem) como o são a tuberculose, a triquinelose ou a febre da carraça; quer ainda no que toca a episodias (doenças transmissíveis às espécies domésticas e selvagens) onde temos variadíssimas doenças e parasitas que têm o javali como hospedeiro e vetor de transmissão, como a Peste Suína Africana (PSA) – doença que tem avançado na Europa a um ritmo muito preocupante e associada às populações selvagens de javali», alertou.
Travar o aumento
Para travar este aumento, a caça ao javali foi autorizada pelo Instituto de Conservação da Natureza e das Florestas (ICNF), inicialmente até 31 de Maio, através de esperas diurnas ou noturnas, com ou sem recurso a luz artificial, dentro ou fora do período de Lua Cheia. Mais recentemente, o ICNF alargou o prazo, entre 1 de Julho e 30 de Setembro, e autorizou a realização de batidas com cães em culturas agrícolas afetadas pelos javalis.
Segundo dados do ICNF, foram mortos 18.414 indivíduos de Javali (adultos e juvenis) em Portugal Continental, na época de caça de 2021/22. Apesar de parecer um número grande, não chega a 1 por 100 ha (0,71). De acordo com o MaisRibatejo, não se sabe, porém, se todos estes animais seriam provenientes de populações naturais, uma vez que no país foi permitida durante muito tempo (continuando a ser praticada) a criação em cativeiro de javalis com vista ao seu repovoamento para a atividade cinegética (alguns provêm de Espanha). Estes javalis – criados em cativeiro –, acabam por ser abatidos pelos caçadores em ações de caça de coutadas ou herdades e em campos de treino existentes por Portugal, que são geridos por empresas do setor cinegético nacional e espanhol.
A Confederação Nacional dos Caçadores Portugueses (CNCP) tem nove federações regionais, desde o Algarve ao Minho e, segundo o seu presidente, Vítor Palmilha, não há nenhuma delas sem problemas relacionados aos javalis. «Todas as medidas tomadas até agora se têm mostrado insuficientes», exalta, expondo as mesmas preocupações que João Carvalho.
Apesar de, neste momento, não ter dados que detalham este aumento, Vítor Palmilha revela que, só no Algarve, entre Janeiro e Setembro de 2022, foram abatidos mais de 1360 javalis. « Por este número pode ver-se que se, por acaso, estas correções de densidade não existissem, o que é que não haveria…É uma coisa impressionante e, nas outras regiões, é igual», alerta, acreditando que deve existir «um aumento do controlo permanente por parte do ICNF», que, acrescentou, «tem estado bastante vigilante». «O Instituto tem autorizado as organizações, associações e empresas turísticas a fazerem as correções de densidade, porque eles causam prejuízos em tudo…», exemplificou, sublinhando que «é preciso fazer muito mais».
Por sua vez, ao telefone com o Nascer do SOL, o ICNF, garante que há um responsável concreto, realçando que «tem trabalhado em conjunto com as várias entidades envolvidas (caçadores, agricultores, etc.) no sentido da tomada de medidas que visem minimizar os prejuízos».
Segundo o Instituto, face a esta situação, os caçadores «devem corrigir a densidade da espécie quando está em excesso» e os agricultores «devem tomar medidas de proteção das culturas». A única posição do ICNF neste momento é «autorizar correções de densidades a esta espécie sempre que se justifique por forma a minimizar a ocorrência de prejuízos».
Infelizmente, de acordo com João Carvalho, as medidas para prevenção de danos como a instalação de cercas elétricas, sendo apenas viáveis numa pequena percentagem das situações, também não são 100% eficazes. «Para controlar e minimizar danos a única forma é recorrer à caça como medida de redução populacional. Quer seja de forma preventiva (atuando por antecipação), quer de forma corretiva (atuando quando os problemas estão instalados)», garantiu. A título de exemplo, os municípios de Berlim, Barcelona e Madrid têm equipas de caçadores para controlar os javalis nos espaços verdes destas grandes cidades.
Interrogado sobre a existência de dados concretos relativamente ao número de animais em 2022, comparando com 2021, o ICNF garante que não existem. «O ICNF desenvolveu em colaboração com a Universidade de Aveiro um estudo que está a ser concluído e que brevemente trará dados concretos sobre a densidade populacional», afirma.
Mais prejuízo para os agricultores
«O meu avô e eu costumamos plantar cerca de um hectare de milho e, neste momento, conseguimos apanhar apenas entre 10 a 20 % do milho semeado. Conheço outro agricultor que nos tem pedido ajuda para proteger o terreno, porque tem uma área muito grande e já não está a dar conta dos estragos», lamenta João Pedro. Estes destroem as plantações de milho, de cevada, de trigo, rasgam as fitas de rega para fazerem «lameiros» para se encher de lama. «Para além dos cereais também atacam e comem borregos, perdizes pequenas, codornizes, coelhos, lebres e tudo o que consigam apanhar», contou o caçador.
Segundo Jorge Neves, presidente da Associação de Produtores de Milho e Sorgo de Portugal (ANPROMIS), em grande parte dos casos, os javalis «destroem simplesmente tudo». «Entram dentro das searas e dão cabo de tudo por andarem ali a passear. Ao mesmo tempo, comem as maçarocas», explicou ao Nascer do SOL. Além disso, os animais estragam materiais e equipamentos de monitorização da rega, por exemplo, sondas.
Interrogado sobre dados concretos de prejuízo neste tipo de plantações, o responsável admite que também «não existem». «Sabemos, contudo, que são sempre maiores do que se pensa», garante. «Isto afeta enormemente a produção, claro! Os agricultores deixam simplesmente de a ter. As produtividades baixam e os prejuízos aumentam de forma direta. As pessoas ao invés de terem x toneladas por hectare, tem muitíssimo menos», lamenta.
O relatório ‘Monitorização da Mortalidade de Fauna nas Estradas da Infra-estruturas de Portugal’, de 2022, mostra que houve 60 javalis atropelados. Identificaram-se ainda as zonas de maior ocorrência de javalis (e cervídeos) atropelados desde 2010 (ano em que começou o Programa de Monitorização da Mortalidade de Fauna da IP) o que dá a indicação das áreas onde é prioritário intervir para alertar os condutores do perigo e equacionar medidas para reduzir o risco de colisão com os animais, como passagens por baixo da estrada. «Destacam-se em particular, pelos valores elevados de ocorrências, as EN114, EN4 e EN18 em Évora, o IC1 e o IC33 em Setúbal, e a A23 em Santarém. São, também, de salientar o IP2 e a ER261, com densidades iguais ou superiores a 2 ocorrências por quilómetro», lê-se no relatório. No dia 25 de Agosto do ano passado, por exemplo, um motociclista de 45 anos faleceu na sequência de uma colisão com um javali na zona de Évora.
Também João Pedro já sofreu um grave acidente de carro, devido à colisão com um javali na sua zona de residência.
Os responsáveis pela resolução
De acordo com o secretário-geral da ANPC, o principal responsável por criar condições para a resolução do problema é o Estado, desde logo «agilizando processos quando é necessário atuar»: «Cabe depois a todos os atores a sua quota parte de responsabilidades, desde os agricultores (identificando precocemente os problemas e tomando medidas de prevenção), sem esquecer as entidades gestoras de zonas de caça que devem acautelar uma gestão sustentável dos javalis e promover a sua compatibilização com os demais valores em presença», frisou. Não obstante, afirma, para além das medidas de gestão das populações pela caça, seria benéfico «apoiar os agricultores a instalarem nas suas culturas sistemas de vedações ou convencionais e/ou elétricas para minimizar estragos». «Esses apoios poderiam provir dos fundos comunitários para a agricultura», exemplificou.
De acordo com João Carvalho, outra medida já desenvolvida noutros países (e.g. França) é a criação de um sistema de seguros agrícolas que cubram os prejuízos associados a um fundo de garantia criado pelo Estado. «Essa seria uma medida muito positiva que o Estado poderia promover porque mesmo intensificando a caça pelas zonas de caça, o comportamento dos javalis não é completamente previsível e os estragos podem na mesma ocorrer», acredita.
Para o PAN é fundamental identificar as causas que levam a uma maior proximidade destas espécies com os meios urbanos e rurais, nomeadamente «a destruição de culturas, considerando a destruição de habitats e escassez de alimento no seu meio natural».
«Sem um censos populacional realizado, tal como o PAN tem vindo a defender, não existem dados credíveis que permitam afirmar que existe um aumento da reprodução da espécie e até a sua relação com a libertação de indivíduos da espécie criados em cativeiro», afirma a porta-voz e deputada do partido Inês de Sousa Real. Nesse sentido, o PAN tem apresentado no Parlamento iniciativas que defendem precisamente a realização de um censos sobre a presença e distribuição desta espécie em Portugal, assim como também já propôs a limitação da criação em cativeiro desta espécie. «Também nesse sentido, é importante que em matéria de política de conservação da natureza apostemos no aumento das áreas protegidas e em sistemas de valoração dos serviços dos ecossistemas, para que as regiões do país que integrem áreas protegidas não as sintam como uma penalização e a preservação dos valores naturais beneficiem, por seu turno, disso mesmo», defende.
Além disso, frisa a deputada, vários estudos científicos «advertem que como método de regulação de populações a caça não é um método eficiente, para além de se tratar de um método cruel». «Não podemos deixar de referir a extrema crueldade a que estes animais são sujeitos, sendo mordidos por inúmeros cães que compõem as matilhas levadas para a chamada ‘caça maior’ ou ainda com recurso a facas, como já vimos em vídeos que circularam nas redes sociais», lembra Inês de Sousa Real. No entender do partido, a argumentação de que a caça ao javali é a única forma de controlar esta espécie «ignora completamente a sua utilidade e a sua importância enquanto espécie nativa na conservação da natureza e dos ecossistemas, pelo que o debate sobre este tema tem alimentado mitos falsos e criado alarme nas populações».
A porta-voz do PAN, acrescenta ainda que no Orçamento do Estado para 2022, o partido viu ser aprovada uma proposta de alteração no sentido da realização de um censos sobre espécies cinegéticas, em que se inclui o javali, através do qual o Governo «tem de proceder à realização de um estudo independente sobre a distribuição e número de espécies cinegéticas, seu habitat e fatores de ameaça, em parceria com as organizações não-governamentais de ambiente e instituições de ensino superior, durante o ano de 2022». «Esta medida é uma medida necessária e de implementação urgente, para que, aí sim, seja possível identificarmos medidas adequadas e procedermos ao investimento de forma informada e eficiente em soluções que contribuam para a eliminação dos conflitos entre esta espécie selvagem e a atividade humana», remata.
O Nascer do SOL, tentou obter o parecer do Ministério da Agricultura que encaminhou o pedido para a área governativa do Ambiente. Porém, até à data, não obtevemos resposta.