por João Paulo André
Químico
Recentemente apresentei no Porto um concerto dedicado à exploração das relações entre música e ciência. Como químico, coube-me salientar alguns aspetos em que a ciência das moléculas e a arte dos sons (e dos silêncios) se tocam, nomeadamente que a capacidade de apreciarmos música depende da ação, no nosso cérebro, de neurotransmissores como a dopamina, que faz a comunicação entre os neurónios do sistema de recompensa, envolvido na sensação de prazer.
Ao contextualizar na sua época as duas obras do concerto, o Trio ‘Arquiduque’ de Beethoven e o Trio ‘Dumky’ de Dvorák, verifiquei que a primeira é de 1811, ano em que o italiano Amedeo Avogadro enunciou a lei que adquiriu o seu nome (volumes iguais de gases diferentes à mesma pressão e temperatura contêm o mesmo número de moléculas). Relativamente à segunda obra, o resultado foi mais surpreendente: no ano em que foi composta, 1891, não houve na química nenhuma descoberta de autoria masculina digna de registo. Num campo dominado por homens, o facto mais marcante daquele ano foi a publicação, na conhecida revista Nature, de um artigo da autoria de uma jovem alemã de nome Agnes Pockles. Sem nunca ter acedido a uma universidade e com equipamento por si idealizado, foi pioneira no estudo da tensão superficial da água coberta por películas de óleos. A ideia surgira-lhe, imagine-se, ao lavar a louça! A tensão superficial é um fenómeno físico-químico dependente das interações moleculares de um líquido; faz com que a camada superficial deste se comporte como uma membrana elástica, permitindo, por exemplo, que criaturas com três pares de patas como os alfaiates (Gerris lacustris) se desloquem sobre a água.
A singularidade do feito de Pockels revela um outro aspeto comum à ciência e à música, pelo menos até há bem pouco: a raridade do reconhecimento da contribuição da mulher. Na ciência tardou a surgir em cena, em finais do século XIX, uma figura como Marie Curie e, em 121 anos, o Prémio Nobel da Química só por oito vezes foi para mãos femininas. Na música, este tipo de descriminação não foi menos flagrante. Podem contar-se pelos dedos os nomes de compositoras que nos são mais ou menos familiares (desde o século XII até aos nossos dias): porventura Hildegard von Bingen, Francesca Caccini, Fanny Mendelssohn, Clara Schumann, Nadia Boulanger e Kaija Saariaaho, e, em Portugal, Constança Capdeville.
Embora fosse de bom tom que as mulheres desenvolvessem os seus dotes musicais, sobretudo se do canto ou do piano se tratasse, as convenções sociais só lhes permitiam a exibição em privado. Só muito tardiamente integrariam algumas das grandes orquestras mundiais. A Filarmónica de Viena, por exemplo, só as recebeu a partir de 1997 e somente em 2005 foi pela primeira vez dirigida por uma maestrina, a australiana Simone Young. Como compositoras, as suas obras não entraram no grande reportório clássico e só recentemente algumas começaram a receber a atenção merecida. A título ilustrativo, a edição de 2022 do festival de Glyndebourne, no Reino Unido, colocou pela primeira em cena a versão original (em francês) da ópera de 1906 The Wreckers, da inglesa Ethel Smyth. Foi também no ano passado que duas sinfonias da norte-americana Florence Price tiveram honras de gravação para uma etiqueta prestigiada como a Deutsche Grammophon. Com mais de três centenas de composições, só há pouco tempo a sua música logrou sair do esquecimento a que fora votada (a sua 4.ª sinfonia, de 1945, permaneceu desconhecida até 2009). Na Antena 2, Rui Vieira Nery tem-nos revelado a compositora romântica francesa Louise Farrenc.
Do lado da ciência, em 2022 a norte-americana Carolyn Bertozzi, com Morten Meldal e Barry Sharpless, recebeu o Nobel da Química «pelo desenvolvimento da química do clique e da química bio-ortogonal». Os últimos anos indicam claramente uma mudança: cinco dos oito Nobéis femininos da Química foram concedidos desde 2009. O mundo, porém, acaba de saber que no Afeganistão os talibãs proibiram as mulheres de acederem ao ensino superior.