Podia ser uma carta em vez de uma crónica. Uma carta aos poetas que rimaram as crianças. Como o Torga: «Pois eu gosto de crianças!/Já fui criança também…/Não me lembro de o ter sido;/Mas só ver reproduzido/O que fui, sabe-me bem./É como se de repente/A minha imagem mudasse/No cristal duma nascente,/E tudo o que sou voltasse/À pureza da semente». Felizes, se calhar essas crianças que não crescem e continuam pela vida fora a ser crianças. Porque há crianças assim. E nós, estranhos bichos carregados de preconceitos, encontramos nela a confusão de algo que não bate certo porque o destino a que os homens estão amarrados é o de crescer e de se tornarem adultos sem graça e sem paciência para recortar pássaros em folhas de cartão como se soubessem as verdadeiras medidas do céu.
Esta não é uma história para crianças. É uma história de crianças. É uma história contra o esquecimento e contra o movimento natural dos anos que passam por alguns de nós ao mesmo tempo que não passam por outros de nós. Em redor da Ana Mesquita, que passou a vida a guardar pedaços de cartão e de papel, há o cada vez mais próximo longínquo reino cor-de-rosa voando pela noite silenciosa de que falava Fernando Pessoa. Sim, talvez os poetas saibam alguma coisa sobre a infância que nós, comuns mortais, não sabemos porque eles adormecem na infância com a cabeça encostada ao colo das mães que os trouxeram ao mundo. Eu tenho saudade de ser criança, mas deixei de sê-lo numa esquina qualquer da vida em que me perdi por não ter continuado a segurar a mão daquele menino que seguia confiante atrás de mim e que era eu. Culpa minha que me distraí. Não podemos distrair-nos dos meninos sob o risco de nunca mais os vermos. Precisamos deles a nosso lado porque são eles que nos ensinam a palavra cativar. Lembram-se do Pequeno Príncipe? «Que quer dizer cativar?», perguntou o menino que vinha de um planeta tão pequeno que ele conseguia, numa só tarde, ver quarenta e três pores-do-sol. «É uma coisa muito esquecida», explicava a raposa. «Significa criar laços». E o Principezinho curioso: «Criar laços?». Então a raposa explicava: «Tu não és ainda para mim senão um menino inteiramente igual a cem mil outros meninos. E eu não tenho necessidade de ti. E tu não tens também necessidade de mim. Não passo a teus olhos de uma raposa igual a cem mil outras raposas. Mas, se tu me cativares, teremos necessidade um do outro. Serás para mim o único no mundo. E eu serei para ti única no mundo…». E foi assim com a Ana. Cativou e deixou-se cativar. E, à sua volta, os meninos que não sabem o que é crescer podem ver todos os fins de tarde muitos mais do que 43 pores-do-sol.
O risco branco da inocência
Porque não há nenhum menino que não seja poeta, lembro-me outra vez do Torga: «Joga a bola, menino!/Dá pontapés certeiros/Na empanturrada imagem/Deste mundo./Traça no firmamento/Órbitas arbitrárias/Onde os astros fingidos/Percam a majestade./Brinca, na eterna idade/Que eu já tive/E perdi,/Quando, por imprudência,/Saltei o risco branco da inocência/E cresci». A Associação QE (Quinta Essência) diz que promove a integração social das pessoas com deficiência e/ou incapacidade, guiando toda a intervenção pedagógica realizada, procurando o desenvolvimento de competências funcionais e sociais que é assumido como um aspeto fundamental para o sucesso do envolvimento e integração dos seus clientes na comunidade que os envolve. Mais: incentiva acontecimentos e experiências capazes de criar e reforçar a rede social de suporte; promove a maior autonomia possível para cada cliente, estimulando o seu desenvolvimento e valorizando as suas capacidades.
A Ana Mesquita, que fervilha de ideias a cada momento, quis levar-lhes a arte. A arte do desenho, do recorte, da construção manual do papel e do cartão. Com a Ana, e como dizia Pessoa – «E todos os brinquedos se transformam/Em coisas vivas, e um cortejo formam:/Cavalos e soldados e bonecas,/Ursos e pretos, que vêm, vão e tornam,/E palhaços que tocam em rabecas…/E há figuras pequenas e engraçadas/Que brincam e dão saltos e passadas…/Mas vem o dia, e, leve e graciosa,/Pé ante pé, volta a melhor das fadas/Ao seu longínquo reino cor-de-rosa». Pois é ela que faz de e fada. E as imagens surgem, cartão, tesoura, cola, imaginação infinita que é a imaginação de todas as crianças, principalmente daquelas que parecem ter ficado presas no recreio encantado da infância infinita. Olhos que brilham. De quem é o brilho desses olhos senão de cada um de nós, sobretudo daqueles que, como eu, têm raiva de não ter trazido o passado roubado no bolso da algibeira?
A Associação Quinta Essência tem um lar residencial forrado a verde de relva e árvores onde instala, num ambiente familiar, todos aqueles que precisam de apoio quotidiano. Afinal todos aqueles que precisam de ficar longe, cada vez mais longe, da fraqueza e da solidão e possam ouvir com clareza os risos da vida adulta à mistura com as gargalhadas daquele tempo mágico em que todos fomos felizes e ninguém estava morto. Vão lá e vejam: https://www.quintaessencia.pt/. Perguntem e fiquem a saber tudo o que quiserem. Entrem na realidade de um tempo sem tempo porque estarão rodeados de meninos que, como Peter Pan, se recusam a crescer, mesmo que os anos passem e tenham perdido, algures, a própria sombra. «Deus criou-me para criança, e deixou-me sempre criança. Mas por que deixou que a Vida me batesse e me tirasse os brinquedos, e me deixasse só no recreio, amarrotando com mãos tão fracas o bibe azul sujo de lágrimas compridas? Se eu não poderia viver senão acarinhado, porque deitaram fora o meu carinho?», perguntava Bernardo Soares no Livro do Desassossego. A Ana quis escrever, pelas próprias mãos e pelas mãos daqueles que se juntaram à sua volta, o Livro do Sossego. Pleno de carinho. Neste lugar da Abrunheira, Sintra, a Vida não bate em ninguém e não há quem fique só no recreio à espera que lhe tirem os brinquedos. Pelo contrário. Os brinquedos podem ser qualquer coisa. A tesoura recorta o cartão e um pássaro voa, de repente, com uma vontade impossível de abrir o céu.