por Ana Mesquita
A sala de Arte e Descoberta, da Associação Quinta Essência (QE), funciona num piso térreo. Dá para um jardim de árvores de fruto onde existe um pequeno lago artificial, com um mecanismo de água corrente. Aquele som de mantra líquido, apazigua e mistura-se com os ruídos da natureza, naquele pé da serra de Sintra. É um lugar calmo, caloroso, raro neste tipo de instituições em Portugal, e também por isso é mais louvável o esforço feito pela direção para o manter acolhedor aos mais de quarenta beneficiários com deficiência mental que recebe diariamente e aos trinta e muitos que ali vivem há anos.
Voltei lá, após três anos, mais uma vez para me envolver, voluntariamente, num projeto de criação artística em comum, com um grupo de quem com o tempo me tornei amiga. Na QE vivi, vivemos, dias que irão habitar entre os melhor guardados pela memória. Ali nasceram seis obras de arte, tendo por base embalagens de papel e cartão que juntei ao longo de três anos. Chamei-lhes Não Descartáveis.
Assim somos nós. Todos.
Não Descartáveis.
Nós, e os papéis, os sacos e os cartões que todos os dias manuseamos e embrulham alimentos ou objetos do quotidiano.
Desde 2018 que junto descartáveis das mais diversas formas e proveniências geográficas, cores, texturas e padrões. Recordo-me da primeira embalagem que guardei e me encorajou a transformar o escritório numa sucursal do ecoponto: um pacote de chá rooibos, com a cara de Nelson Mandela, que comprei numa lojinha gourmet da avenida Julius Nyerere, em Maputo, em 2018. A embalagem, aberta e espalmada, é em si uma pequena obra de arte. Não se limita a chamar à atenção de um chá de cor avermelhada, com propriedades anti-inflamatórias e antialérgicas. Exibe Mandela, com aquele sorriso impossível para alguém que encarceraram durante trinta anos, e uma frase assinada com escrita do presidente sul-africano, essa sim, antioxidante e capaz de exaltar entendimentos, «A educação é a arma mais poderosa que podemos usar para mudar o mundo».
Com um padrinho destes, acreditei que as hipóteses de falhar o propósito de criar arte sustentável, delicada, estavam protegidas. O resultado do projeto é uma viagem de harmonia e respeito pelo mundo natural, um apelo à economia circular em contraste com o consumismo desenfreado.
Nestas seis composições, juntando elementos que seriam apenas passado, ou lixo na realidade, faço a ponte entre a ancestralidade e o contemporâneo, conferindo uma nova existência a sacos de papel, invólucros, folhas de um jornal marroquino, pacotes de leite, de chá, de açúcar…
A multiculturalidade expressa em embalagens de diferentes origens, idiomas e iconografias, junta-se, seguindo uma paleta de cores que confere unidade às seis narrativas.
Subtis estórias nascem da contribuição ingénua e hiperbólica dos meus companheiros de trabalho: o Luís Carlos, a Rita Nobre, a Mi, a Ana Braz, a Maria Ana, a Ana Claudia e o sempre bem-humorado Pãopão. Sem esquecer a graciosa, preciosa, ajuda das educadoras Sara Matias e da Carolina Silveira Ramos.
E a verdade é que, por fim, se percebe que tudo partiu do desenho.
É o desenho quem comanda o resultado. Ele une tudo entre as estórias, as texturas, os relevos, as dobragens do papel, o aprumo das esquadrias, a precisão do x-ato. Desenhos meus e deles entrelaçam-se. Nascem animais e figuras fantasiosas, riscadas a caneta BIC e a lápis de cor, e de cera, que interrompem a regularidade matemática das camadas de recortes das embalagens, numa arrumação plástica que faz de coisas aparente irrelevantes objetos de arte.
Se há momentos da vida que valem mais a pena, este foi um deles.
Nada, nem ninguém, se Descarta. Tudo se transforma.
A coisa evolui, em harmonia. No momento da História que a humanidade atravessa, mais do que nunca, urge não descartar.
É preciso não deixar morrer o futuro.