Não é segredo nenhum que a monarquia se sustenta no imaginário. É uma realidade construída com base na noção de que um ser humano é mais do que um ser humano. Outrora, essa noção era sustentada na vontade, supunha-se, de Deus. Hoje em dia, sobrevive no simbólico, na teatralidade do protocolo, no espetáculo. Tudo isso explica por que a realeza é tão irresistivelmente fascinante aos olhos do público. Mas até que ponto revelar demasiado não prejudica a perceção pública da instituição?
Nas quase 500 páginas de Spare (‘suplente’ na tradução literal), a autobiografia do Príncipe Harry, que chegou às livrarias portuguesas com o título Na Sombra, editado pela Objectiva, essa não parece ser uma preocupação. O Duque de Sussex destapa o véu e revela ao pormenor a sua vida, desde a infância, passando pelas inúmeras acusações que faz à imprensa tabloide e à casa real, pondo ainda a nu a relação com o irmão e o seu relacionamento com Meghan Markle, que culminou no afastamento do seu cargo como membro sénior da família real britânica.
Guerra entre irmãos
Uma das primeiras passagens do livro a virem a público e que tem gerado mais controvérsia diz respeito a uma discussão acesa com o irmão. A cena ter-se-á passado em 2019, na casa de Harry e Meghan em Londres, meses antes de o casal ter anunciado que ia abandonar os deveres reais. William terá acusado Meghan de ser «indelicada» e «mordaz». Depois, o conflito terá escalado ao ponto de se tornar físico: «[William] agarrou-me pelo colarinho, arrancando o fio que trazia ao pescoço e atirou-me ao chão», revela Harry, que se terá magoado. «Aterrei sobre a tigela do cão, que se partiu debaixo das minhas costas, os cacos a cortarem-me. Fiquei ali deitado por um momento, atordoado, e depois pus-me de pé e pedi-lhe que saísse».
William ainda o terá desafiado a ripostar, mas sem sucesso, desculpou-se e pediu-lhe que não contasse o episódio a Meghan. Harry não o fez de imediato, tendo primeiro ligado à sua psicoterapeuta a quem disse estar «orgulhoso» por não ter respondido à letra ao irmão.
Nas suas memórias, Harry refere-se a William como o seu «irmão amado» mas também como seu «arqui-inimigo». Talvez por isso, o encontro, no funeral do príncipe Filipe, entre irmãos tenha sido tenso e tenha mesmo levado Carlos a apelar ao bom senso dos filhos: «Por favor, rapazes. Não façam dos meus últimos anos uma miséria», terá dito, numa tentativa de refrear os ânimos.
O suplente e os rumores
O título do livro em inglês refere-se à ideia de um herdeiro e um suplente. Um irmão na linha direta de sucessão ao trono e outro como ‘plano b’. Segundo as revelações de Harry, depois de ter nascido, o seu pai terá ficado satisfeito, tendo dito a Diana: «Agora deste-me um herdeiro e um suplente — o meu trabalho está feito».
«O papá e o William nunca poderiam estar juntos no mesmo voo, porque não podia haver a mínima hipótese de o primeiro e o segundo na linha de sucessão ao trono desaparecerem. Mas ninguém queria saber com quem eu viajava, o suplente era sempre descartável», conta ainda no livro.
Além de ter que gerir esta diferença entre si e o irmão, Harry era ainda atormentado pelos rumores sobre quem era o seu pai biológico. Algo que era reforçado pelo próprio Carlos. Recordando um episódio da infância, o Duque de Sussex refere que o príncipe de Gales chegou a brincar com a possibilidade de não ser o seu verdadeiro pai: «Quem sabe se sou mesmo o príncipe de Gales? Quem sabe sequer se sou o seu verdadeiro pai?».
Confessando-se ressentido com esta piada, sobretudo porque «corria o boato» de que o seu verdadeiro pai era James Hewitt, um dos amantes de Diana, Harry aproveita as suas memórias para sublinhar que nasceu anos antes de a mãe conhecer o militar com quem manteve uma relação extraconjugal entre 1986 e 1991, atacando a imprensa por ter alimentado esta teoria na época.
«Uma das razões daquele boato foi o facto de o major Hewitt ser ruivo, mas a outra foi puro sadismo. Os leitores dos tabloides ficavam fascinados ante a perspetiva de o filho mais novo do príncipe Carlos não ser filho do príncipe Carlos».
O ajuste de contas com Kate
A propósito do casamento de William e Kate Middleton, Harry conta que, naquele tempo, adorava a cunhada, considerando-a «a irmã que sempre quis ter» e que nunca teve. Mas, à medida que se avança no livro, é notória a degradação da sua relação com a mulher do irmão.
Primeiro, põe em pratos limpos o caso do uniforme nazi que foi notícia em todo o mundo e o obrigou a fazer um pedido de desculpas público, apontando culpas ao irmão e à cunhada que o terão incentivado a usar o disfarce numa festa em 2005.
William tinha começado há pouco tempo o namoro com Kate e organizou uma festa de máscaras, insistindo que Harry fosse à festa. Este, querendo agradar o casal, terá ligado a ambos para pedir opinião entre duas hipóteses de disfarce: um uniforme de piloto inglês e outro, de nazi. «O uniforme nazi», responderam. Na festa ninguém pareceu dar importância ao disfarce, mas uma fotografia dele vestido de nazi acabou na imprensa.
Não satisfeito, Harry revela ainda no livro as mensagens que foram trocadas entre Kate Middleton e Meghan Markle e que levaram a uma zanga entre as duas, poucos dias antes do casamento dos duques de Sussex, corroborando a alegação feita por Meghan durante a entrevista do casal com a apresentadora norte-americana Oprah de que a princesa de Gales a fez chorar, contrariamente à narrativa inicial que passou na imprensa de que teria sido Kate a ficar em lágrimas nos preparativos da cerimónia.
O motivo terá sido o vestido da princesa Charlotte. Segundo Harry, Kate enviou uma mensagem quatro dias antes da cerimónia a informar que o vestido da filha não era do tamanho certo. Meghan terá pedido à cunhada que levasse o vestido ao alfaiate, tal como as restantes damas de honor. Mas Kate não terá ficado satisfeita com a resposta, exigindo que o vestido fosse refeito. Embora a princesa de Gales tenha acabado por ceder, Harry terá encontrado Meghan, que estava ainda sob pressão por causa do que estava a acontecer com o seu pai, a «soluçar no chão» quando chegou a casa.
As respostas à morte de Diana
Durante muitos anos, Harry acreditou que a mãe, a princesa Diana, estava viva e iria voltar. «Eu dizia muitas vezes para mim próprio de manhã, talvez este seja o dia. Talvez este seja o dia em que ela vai reaparecer», escreve no livro de memórias. Esta crença manteve-se até ser adulto. Quando tinha 23 anos, visitou Paris e, durante a viagem, pediu ao motorista que o levasse pelo túnel onde a mãe morreu, à mesma velocidade que o carro ia antes do embate. A obsessão em torno da morte da princesa Diana ainda o levou a tentar reabrir as investigações, mas foi «persuadido» a não fazer isso.
O rebelde que foi militar
Perturbado com a morte da mãe, refugiou-se nas bebedeiras e no consumo de drogas — desde fumar erva a cheirar linhas de cocaína. Sobre o seu histórico de bad boy, descreve que fez amigos que «procuravam a desobediência». «Aceitei todos os cigarros que me ofereceram e, do mesmo modo irrefletido, não tardei a passar à erva».
Além de fazer uma espécie de relatório de todas as substâncias que consumiu, Harry também convida o leitor a imiscuir-se na sua vida sexual, detalhando que perdeu a virgindade num campo atrás de um pub, com uma mulher mais velha, e as várias namoradas que teve até conhecer Meghan.
Sobre o seu percurso militar, diz abertamente ter abatido 25 talibãs no Afeganistão. «O meu número é 25. Não é um número que me dê satisfação, mas também não me envergonho disso».
O Duque de Sussex, que foi militar durante dez anos e fez duas missões no Afeganistão, justifica no livro que nessa altura não pensava nestas pessoas como «humanos», mas sim como «peças de xadrez» que precisavam de ser retiradas do tabuleiro, tal como tinha sido instruído no treino militar.