Por João Paulo André, Químico
Morreu este mês o arquiteto Alfredo Campos Matos (1928-2023), porventura o maior conhecedor de Eça e da sua obra. De uma vida dedicada ao estudo do grande escritor realista sobressai o monumental Dicionário de Eça de Queiroz, que organizou e coordenou. Aquando da preparação da 3.ª edição (INCM, 2015), uma providencial corrente de amigos fez-me chegar, in extremis, ao seu contacto. O resultado foi uma nova entrada neste dicionário: QUÍMICA E FARMÁCIA.
Para o projeto de expor a «nudez forte da verdade», Eça teve na ciência uma poderosa aliada. A par da hereditariedade e do evolucionismo, a química foi um dos domínios do saber científico-natural de que se socorreu, sendo dois os planos fundamentais em que é encontrada na sua narrativa: o doméstico e o farmacêutico. No primeiro, contribui para a autenticidade de ambientes e lides caseiras (por exemplo, o candeeiro de latão polido com uma dissolução de ácido oxálico, n’O Conde d’ Abranhos); no segundo, tanto confere verosimilhança à efabulação (a digitalis para o coração de Juliana, n’O Primo Basílio) como se materializa em cenário (a farmácia d’A Capital). Os produtos químicos e farmacêuticos que referia eram de uso generalizado, pelo que facilmente os leitores os reconheciam (nitrato de prata, bismuto, xarope de codeína, …).
Poderá ainda considerar-se que o mundo da química figura num terceiro plano da prosa queiroziana, o metafórico, concorrendo para a fina e ácida ironia respingada sobre a sociedade. Exemplos disso são o bicarbonato para a indigestão da poesia de Alencar, n’Os Maias, e a benzina para a nódoa do governo, n’O Conde d’ Abranhos (que atualidade!!).
O período da vida de Eça caracterizou-se por um acelerado desenvolvimento científico. Citem-se, neste contexto, os progressos da química analítica, essenciais à implantação da teoria atómica; a aplicação do espetroscópio à análise química, em 1859, graças a Bunsen e Kirchhoff; a realização do Congresso de Karlsruhe em 1860, que estabeleceu em definitivo a diferença entre átomo e molécula; a criação da Tabela Periódica por Mendeleiev, em 1869, e a introdução do conceito de ião por Arrhenius, em 1884. A síntese orgânica beneficiou de grandes avanços, em particular a dos derivados do fenol (obtido do alcatrão resultante da queima da hulha para produção do gás de iluminação das cidades), assim como a química dos açúcares. Em 1900 (ano da morte de Eça), ao apresentar a lei que rege a emissão de radiação electromagnética por um corpo negro (objeto hipotético que absorve toda a radiação que nele incide), Planck abriu as portas a uma nova era da ciência: a da mecânica quântica.
Não surpreendentemente, ao analisar o conteúdo químico da obra do nosso maior autor realista, encontrei dezenas de substâncias, materiais e preparações farmacêuticas. O inesperado, porém, surgiu no seguinte excerto d’ A Tragédia da Rua das Flores: «Sobre uma mesa redonda coberta por um feio pano felpudo, de cores azulinas, estava um buvard de pele de serpente de Klem, com um brasão a prata; folhas de papel, marcado por Wyon; uma faca de papel de baquelite […]».
É um facto que Eça era um homem culto e a par das novidades do seu tempo, mas não tinha, obviamente, a capacidade de prever o futuro nem de batizar a priori aquele que é considerado o precursor dos plásticos: a baquelite (resina sintética polifenólica). Com efeito, A Tragédia da Rua das Flores, romance escrito entre 1877 e 1878, precede em muito o aparecimento daquele material, que só foi criado em 1907 pelo químico de origem belga Leo Baekeland. A publicação póstuma da obra, em 1980, foi a partir de um manuscrito quase ilegível que o autor nunca corrigira. Só a muito custo (e muita imaginação) os editores conseguiram passá-lo a letra de imprensa. Já «uma faca de papel de malaquite [mineral de cor verde que é carbonato de cobre(II)]», como aparece nalgumas versões, é totalmente plausível. Por isso, meus senhores, de uma vez por todas, corrijam por favor o texto!