No início do século passado, o deserto do Sahara era visto uma barreira natural intransponível, que nem o caminho de ferro conseguia transpor. Porém, o espírito empreendedor e aventureiro de André Citroën esteve na origem de uma fantástica travessia que ligou a Argélia ao Sudão francês, atual Mali, uma aventura que durou 21 dias e percorreu 3200 quilómetros.
A caravana Citroën saiu de Touggourt, às portas do Sahara, a 17 de dezembro de 1922, e chegou a Tombuctu a 7 janeiro de 1923, atravessando o Sahara de norte a sul. Onze corajosos exploradores com uns veículos que ficaram conhecidos pelos ‘escaravelhos de ouro’ atravessaram o grande deserto em três semanas, quando antes eram necessários seis meses em caravanas de camelos. A viagem de regresso não estava inicialmente prevista, mas dado o sucesso da operação e a fiabilidade dos veículos, a equipa pediu autorização a André Citroën para regressar à Argélia pelo mesmo percurso, duplicando assim a proeza, o que foi bem aceite pelo homem que idealizou a expedição. Atravessaram duas vezes a região mais árida do Sahara, sem qualquer sinal de vida ou de civilização, nomeadamente o tenebroso Ténéré, que, décadas mais tarde, seria um autêntico terror para os pilotos do Paris-Dakar. Por tudo isto, a viagem Touggourt-Tombuctu-Touggourt foi uma extraordinária epopeia na época, e ganhou maior relevância por ter sido a primeira grande viagem de exploração acompanhada pela imprensa mundial, com publicação regular de boletins nos jornais e transmissões via rádio e telégrafo para Paris. O êxito desta primeira travessia foi o culminar de várias tentativas de conquistar o Sahara por carro e avião levadas a cabo entre 1910 e 1921. Durante esse período, corajosos condutores e aviadores tentaram cruzar sem êxito o Grande Erg e o Tanezrouft, alguns acabaram por morrer nessa aventura.
Inspirou o Dakar
Para conquistar o deserto foram construídos cinco modelos iguais com base no Citroën B2 K1, o que constituiu um verdadeiro desafio técnico. A carroçaria era do tipo torpedo, tinham motor de quatro cilindros com 10 cv, caixa de seis velocidades em vez das três originais e atingiam 45 km/h. Mediam 3,6 m de comprimento e 1,4 m de largura e estavam equipados com o mecanismo de lagartas sem fim no eixo traseiro, inventado por Adolphe Kégresse – essa foi a chave para o sucesso. Estes estranhos veículos andavam em qualquer tipo de terreno e eram reabastecidos nas pistas de aterragem usadas pelos aviões da época.
O deserto do Sahara é dos mais quentes e áridos do mundo e tem uma amplitude térmica significativa; durante o dia a temperatura atinge os 50 graus e de noite baixa até 10 graus negativos. Além disso, sopram ventos muito fortes que criam tempestades de areia e dificultam a visibilidade. Foi tudo isto que a caravana teve de enfrentar sem sinalização, sem roadbook e sem ajuda de sistemas de navegação, o que mereceu de André Citroën o seguinte comentário: «(…) graças a eles, foi construído um trabalho duradouro, uma obra que continuará a produzir resultados, mesmo após o seu desaparecimento. E, para eles, isto é o mais importante: os construtores irão morrer, mas o templo foi construído». As palavras do fundador da marca francesa foram proféticas. Esta viagem de exploração do deserto acabou por estar na origem de todas as competições da história moderna, nomeadamente do Paris-Dakar, uma prova mítica idealizada por outro visionário francês, Thierry Sabine.
O sucesso da Citroën fez mossa no orgulho da Renault que, um ano depois, respondeu com uma expedição que ligou Touggourt a Tozeur, em mais uma travessia do Sahara. Alinhou com três Renault MH de três eixos e seis rodas e uma potência de 10 cv. Para os construtores automóvel a conquista do deserto tornou-se um desafio importante em termos de imagem. Um duelo francês no coração de África, assim se vivam os loucos anos 20.
Meio jipe, meio tanque
Voltando à viagem original, Georges-Marie Haardt, diretor das fábricas Citroën, liderou a expedição e contou com a ajuda de Louis Audouin-Dubreuil, profundo conhecedor da região. Foram acompanhados por cinco mecânicos experientes, por um geógrafo, que foi responsável pela captação de imagens, e por um cozinheiro. À equipa juntou-se o cão Flossie, que foi a mascote da expedição, e que deve ter inspirado Hervé a criar o Milou, o companheiro de aventuras de Tintin.
O veículo utilizado tinha dado provas no cenário civil e militar e antes de avançar para a expedição foram realizados milhares de quilómetros de testes. Tendo em atenção as características e duração da viagem, os carros tinham uma caixa de alumínio na traseira para guardar alimentos, ferramentas, peças de substituição, a tenda onde pernoitavam e até munições. Sim, havia três carros equipados com metralhadoras de avião para garantir a segurança da caravana.
Os aventureiros partiram de Touggourt na presença do governador geral da Argélia e entraram determinados pelo deserto. Pela primeira vez, um pequeno grupo automóvel aventurou-se pelo Sahara, desafiando os perigos do deserto e colocando à prova as mecânicas ao atravessar impressionantes dunas, vales e planícies. O apurado sentido de orientação foi fundamental para o êxito da expedição, era muito fácil perderem-se na imensidão do Sahara colocando em risco a própria vida. O deserto não perdoa. Mantiveram-se permanentemente atentos, depararam-se com situações desconhecidas e mostraram grande coragem e determinação, além de muita resiliência pois tinham de fazer a assistência aos veículos, montar e desmontar as tendas e acertar com o caminho usando rudimentares instrumentos de navegação. A passagem de ano foi feita com uma equipa de reabastecimento e não faltou o champanhe para comemorar a entrada em 1923. À medida que a expedição avançava os cenários mudavam. As dunas deram lugar a estepes e florestas, e descobriram novas culturas e hábitos. Na passagem por Ouargla foram recebidos em festa pelos indígenas. Como era habitual em ocasiões especiais, os aventureiros foram recebidos em Tomboctu pelo comandante da região e por uma multidão curiosa e entusiasmada por ver os exploradores e as suas fabulosas máquinas. A expedição tinha sido um êxito e era tempo de regressar ao ponto de partida. Estava aberto o caminho para o coração de África com a colaboração da Citroën.