por Maria Moreira Rato e Sara Porto
Em território nacional, não se sabe ao certo quantas pessoas trans existem, mas 187 adultos estão em consultas de acompanhamento no CHU Porto e entre 10 a 15 crianças seguem o mesmo processo. A alteração de nome e de sexo no registo civil ultrapassou recordes em 2021. Existem realidades bem documentadas, como a dos EUA, mas há questões que ainda se impõem em todos os países. Por exemplo, as crianças e os jovens arrependem-se de iniciar este processo de transição? E em Portugal, tal acontece com frequência?
Esperamos sempre algo uns dos outros. Podemos até achar que não. Porém, sejam eles pais, irmãos, filhos, amigos, conhecidos ou desconhecidos, o ser humano tem sempre a tendência (mesmo que inconsciente) para – na sua cabeça –, criar cenários perspetivando o que os outros podem ou devem dizer, fazer ou mesmo ser. Ao pensarmos nesta premissa, é natural que nos aproximemos de um dos temas que tem sido (cada vez mais) posto em cima da mesa, principalmente nos últimos anos. Meninos com as unhas pintadas, que preferem fatos de princesas a vestimentas dos super heróis… Meninas que preferem ter uma bola no pé ao invés de uma varinha de fada na mão…
Recentemente, têm sido levantadas outras questões já que algumas países da Europa, como a Espanha e Escócia aprovaram — ao fim de longos e árduos processos — legislação que autoriza a autodeterminação de género, que não significa uma mudança de sexo, mas sim do género com o qual cada pessoa se identifica.
No caso escocês, ao fim de três dias de intensos debates no Holyrood, o Parlamento da Escócia, foi aprovada uma lei que auxilia a transição de pessoas transgénero, agora autorizada a partir dos 16 anos — antes era a partir dos 18. A nova lei elimina a exigência de um diagnóstico psiquiátrico para solicitar o certificado de reconhecimento de género. Além disso, reduz de dois anos para três meses o período que a pessoa deve viver com o género indicado, com prazo adicional de três meses de reflexão.
Já em Espanha, no dia 22 de dezembro, o Parlamento aprovou uma nova lei que permite a mudança de género no registo civil a partir dos 12 anos sem necessidade de pareceres médicos, sendo que a partir dos 16 basta a vontade da própria pessoa. Porém, será necessária autorização de um juiz para os casos entre os 12 e os 14 anos e dos pais ou tutores legais entre os 14 e os 16 anos. Relativamente aos maiores de 16 anos, bastará a própria vontade de quem quiser fazer a alteração. Além disso, em todos os casos deixam também de ser necessários pareceres médicos e provas de qualquer tratamento ou terapia hormonal. A nova lei proíbe também cirurgias de modificação genital até aos 12 anos em crianças que nasçam com características físicas dos dois géneros (crianças intersexuais ou hermafroditas). Conhecida como lei da “autodeterminação de género”, o diploma tem como objetivo “retirar a carga de patologia à mudança de género”.
Em Portugal, foi publicada a lei da autodeterminação, que permite a adolescentes a partir dos 16 anos escolherem o sexo. No entanto, se forem menores, somente o poderão fazer com o consentimento dos representantes legais.
A desconstrução de género
Nicolau tem 3 anos. Foi a partir do momento em que começou a criar a sua independência, ou seja, a brincar sozinho e a tirar as próprias ilações dos filmes que via, que começou a ganhar uma outra personalidade: “Quando lhe perguntava que filme queria ver, começou a escolher sempre filmes com princesas”, começou por explicar a sua mãe Emília ao i. Eram as princesas que mais cantavam, dançavam e que tinham os vestidos mais brilhantes que mais o fascinavam. “A determinada altura, começou a pedir para ter o cabelo grande, tal como a Rapunzel ou a Elsa do filme Frozen, em particular”, continuou, sublinhando que tanto ela como o pai acreditam muito na “desconstrução de género”. “Eu acho que mais do que qualquer coisa nós somos pessoas e devemos ser aquilo que queremos ser!”, acrescentou, frisando que isso não significa que o seu filho seja ou venha a ser uma criança não binária, homossexual, ou bissexual. “Acho que hoje em dia tem de existir espaço para sermos mais femininos e mais masculinos, com liberdade. Acredito que o Nicolau está a aprender a viver dessa forma”. Segundo a mesma, a sua família é aquilo a que muitos chamam de família Queer. Para além do seu círculo ser composto maioritariamente por pessoas de todos os géneros e sexos, a sua irmã (tia de Nicolau) é não-binária (termo guarda-chuva para identidades de género que não são estritamente masculinas ou femininas, estando portanto fora do binário de género e da cisnormatividade), e a própria Emília está, neste momento, numa relação com uma mulher, identificando-se como bissexual.
“Ele começou a ver a tia Filipe (que prefere ser tratada neste momento com o género feminino) a pintar as unhas, a vestir roupas diferentes, deixar crescer o cabelo… Começou a (com calma) pintar as unhas uma vez ou outra, até que começou a andar com elas pintadas como quer. Às vezes só de uma cor, outras vezes com várias”, explicou a mãe. Interrogada sobre a maneira como isso é recebido no infantário, admite que, muitas vezes, Nicolau lhe diz que foi questionado. “Ele responde que usa porque gosta. Acho que isso demonstra a liberdade que sente e a segurança que lhe damos. Acho que já se sabe defender!”, conta satisfeita. Além disso, confidencia, o menino também já leva os vestidos de princesas para a escola: “Quanto mais brilhantes tiver, mais ele gosta!”, brinca. No caso do cabelo, este naturalmente tem vindo a crescer, contudo, os pais ofereceram-lhe no princípio deste ano, uma longa trança semelhante à da Rapunzel. “Basicamente é familiarizar-se com todas as realidades. Acho que essa é também uma forma de proteção”, acredita, acrescentando que esta será uma realidade cada vez mais presente, já que as crianças, cada vez mais novas, têm contacto com pessoas LGBTQIA+. “Quero abrir-lhe caminho para ele ser o que quiser e se ele me pede para tratá-lo por princesa, não vejo problema em fazê-lo”, sublinha.
Esclarecer conceitos
Para melhor entender as definições de transexualidade e transgénero, vale a pena perceber primeiro a diferença entre sexo e género, definições que têm sido entendidas, frequentemente, de forma equivocada. “Sexo, diz respeito a uma determinação biológica (cromossomas, hormonas e órgãos reprodutivos), e o género e a identidade de género dizem respeito às características sociais construídas em relação ao que significa “ser homem ou mulher”, e que diz respeito à experiência de masculinidade e/ou feminilidade de uma pessoa (vestuário, penteado, postura e comportamentos etc.)”, esclarece ao i Elsa Rocha Fernandes, psiquiatra e docente convidada na Faculdade de Medicina de Lisboa. Neste grupo de características encontramos normas, comportamentos e papéis que são esperados da pessoa: “Sendo uma construção social, resulta deste facto a existência de variações de sociedade para sociedade, e de acordo com a época vivida, podendo variar ao longo do tempo”, explicou.
E Isaac dos Santos vai mais longe. O barbeiro e influencer de 25 anos, viveu durante 18 “num corpo que não lhe pertencia”. Depois de ter mudado de nome, realizou então uma reposição hormonal que tornou a sua voz mais grossa, as feições mudaram, a gordura começou a distribuir-se de forma diferente, as ancas, que lhe incomodavam bastante, desapareceram, a barba começou a crescer. “Juntando isto à mastectomia consegui ter o corpo estereotipadamente masculino de que necessitava”, admitiu numa entrevista ao i em dezembro do ano passado. Na altura, explicava que transgénero “é um termo que tem vindo a cair, felizmente”. “Dividia-se as pessoas trans pelas que tinham feito cirurgias genitais e as que não tinham. As que tinham, eram transexuais, as que não tinham eram transgénero. Este conceito era muito invasivo e redutor”, acrescentou Isaac, ressaltando que “ninguém tem absolutamente nada a ver com os nossos genitais”. Ou seja, atualmente, elucidou, o termo que é utilizado e considerado mais inclusivo e correto é o de “transgénero”, ou “trans” que “tem espaço para albergar todas as pessoas que não se identificam com o género que lhes foi atribuído à nascença”. “O género está em mim, não no meu corpo. Necessitamos do corpo para nos afirmarmos, mas o corpo não define o nosso género. Eu sou tão homem hoje, quanto era antes de reposição hormonal e cirurgia”, declarou na altura.
EUA: uma realidade bem documentada
De acordo com dados de junho de 2021, recolhidos pelo Statista entre abril e maio desse mesmo ano, sendo que o inquérito contou com a participação de aproximadamente 19 mil pessoas com idades compreendidas entre os 16 e os 74 anos, a Alemanha e a Suécia são os países onde mais pessoas se identificam como transgénero, com a fluidez de género ou com o género não-binário (3% da população em cada um dos países). De seguida, encontramos a Índia, a Hungria, a Argentina, o Brasil, a Rússia, o Canadá, a Austrália, Espanha, o Reino Unido e o Chile com 2%. Por fim, com 1%, temos a Coreia do Sul, Itália, Peru, Malásia, Turquia, Japão, Países Baixos, México, China, França, Polónia, África do Sul, EUA e Bélgica.
Os EUA, por exemplo, constituem um estudo de caso. E o The Williams Institute on Sexual Orientation and Gender Identity Law and Public Policy, da Universidade da Califórnia, publicou dados em junho de 2022. Mais de 1,6 milhões de adultos (com 18 anos ou mais anos) e jovens (dos 13 aos 17 anos) se identificam como transgénero nos Estados Unidos, ou 0,6% daqueles com 13 ou mais anos. Entre os adultos americanos, 0,5% (cerca de 1,3 milhões) identificam-se como transgénero e entre os jovens dos 13 aos 17 anos, a percentagem é de 1,4%, ou seja, aproximadamente 300 mil. Dos 1,3 milhões de adultos que se identificam como transgénero, 38,5% (515.200) são mulheres, 35,9% (480.000) são homens e 25,6% (341.800) relataram não estar em conformidade com nenhum género.
Na psiquiatria
A Associação Mundial de Saúde Transgénero (WPATH) é perentória ao reforçar a necessidade de reduzir o estigma associado à não conformidade de género, não a referindo como doença ou patologia.
Em relação à possibilidade de mudança de sexo antes da maioridade, durante a infância e fase pré púbere, segundo Elsa Rocha Fernandes, a literatura existente aponta vários prós e contras em relação quer à transição social, quer à hormonal, nesta fase. “Entre os fatores a favor da transição social em crianças e jovens pré púberes é referida a melhoria da saúde mental numa população que apresenta elevadas taxas de ideação suicida; é também referido o facto de que não acomodar a transição social pode ser considerada uma violação da autonomia das crianças, um abuso psicológico e que se tratar de um abuso dos direitos humanos”, explicou.
No que diz respeito à transição hormonal, a toma de bloqueadores pubertais, isto é, análogos que suprimem a libertação das hormonas sexuais, como sejam a testosterona e estrogénios, durante a puberdade pode, no caso dos que nasceram do sexo masculino, “diminuir o crescimento de pelos faciais e corporais, prevenir o desenvolvimento de uma voz mais grave e limitar o crescimento da genitália”; no caso das pessoas com sexo feminino ao nascimento, o tratamento “limita o desenvolvimento mamário e interrompe a menstruação”. “Sendo a puberdade especialmente desconfortável, e stressante, para aqueles que apresentam disforia de género, o resultado do bloqueio do desenvolvimento de caracteres sexuais secundários de acordo com o sexo apresentado ao nascimento pode melhorar a saúde mental ao diminuir a ansiedade e depressão, melhorar as relações sociais e com outros adolescentes, podendo eliminar a necessidade de intervenções cirúrgicas futuras e diminuir os pensamentos suicidas ou auto-lesivos”, alertou.
A questão global, e de preocupação atualmente encontrada na literatura em relação à transição precoce, na infância e pré puberdade, conta a médica, “passa pela preocupação com, entre outros, os efeitos secundários associados à terapêutica utilizada, como sejam a curto prazo a cefaleia ou o aumento do peso, e a longo prazo, por exemplo, a diminuição do impulso de crescimento e diminuição da densidade óssea e fertilidade na idade adulta”.
Enquanto a transição social e o tratamento de supressão hormonal na puberdade podem ser reversíveis, outras alterações são semipermanentes ou permanentes (como o tratamento hormonal de afirmação de género ou intervenções cirúrgicas), um fator que pesa especialmente nas decisões tomadas. “A preocupação quanto a uma transição precoce, em crianças e pré púberes, estende-se ainda a crianças e jovens que deixam de experienciar disforia de género após a puberdade, aqueles que ‘alinham’ com o seu sexo biológico na puberdade, e desistem da transição, situação referida em inúmeros estudos de disforia de género em jovens”: “Estas crianças, e pré púberes, podem por isso, diz a literatura, ser expostos a tratamento médicos que seriam evitados com o processo de maturação”, acrescenta.
Baixa taxa de arrependimento em crianças, jovens e adultos
No estudo An analysis of all applications for sex reassignment surgery in Sweden, 1960-2010: prevalence, incidence, and regrets, é esclarecido que a taxa de arrependimento após a cirurgia genital é muito reduzida. No decorrer desta janela temporal, os investigadores concluíram que um total de 767 pessoas (289 mulheres natais e 478 homens natos) solicitaram a mudança de sexo. Destes, 89% (252 mulheres para homens e 429 homens para mulheres receberam um novo género legal e cirurgia de redesignação sexual (SRS) estipulada. Um total de 25 indivíduos (7 mulheres natas e 18 homens natos), igualando 3,3%, tiveram negado um novo género legal e SRS.
Os restantes desistiram do pedido, estavam em lista de espera para cirurgia ou receberam tratamento parcial. A incidência de pedidos foi calculada e estratificada em quatro períodos entre 1972 e 2010. A incidência aumentou significativamente de 0,16 para 0,42/100.000/ano (mulher para homem) e de 0,23 para 0,73/100.000/ano (homem para mulher). O aumento mais acentuado ocorreu após 2000. A proporção de indivíduos que transitaram do género feminino para o masculino, com 30 ou mais anos, na época do processo manteve-se estável em torno de 30%. Em contraste, a proporção de indivíduos com transição de homem para mulher, de 30 ou mais anos, aumentou de 37% na primeira década para 60% nas últimas três décadas. Houve 15 (5 mulheres que decidiram transitar para o género masculino e 10 homens que decidiram transitar para o género feminino) casos de arrependimento, isto é, existiu uma taxa de arrependimento de 2,2% para ambos os sexos.
Em Portugal, esta temática também começa a ser estudada. Na dissertação Supressão Pubertária em Crianças e Adolescentes Trans, dissertação de candidatura ao grau de Mestre em Medicina, submetida ao Instituto de Ciências Biomédicas Abel Salazar – Universidade do Porto, por Eduarda Rosas, podemos ler: “Um dos principais argumentos para limitar o acesso de crianças, adolescentes e adultos trans a terapêuticas de afirmação de género, sejam estas farmacológicas ou cirúrgicas, fundamenta-se na existência de arrependimento. Portanto, torna-se importante explorar possíveis correlações entre terapias de afirmação de género, incluindo a supressão pubertária, e o desenvolvimento de sentimentos de arrependimento”.
“As razões por detrás da escolha de reverter o processo transicional foram estudadas através de um inquérito realizado em 2021 e preenchido por 100 indivíduos que decidiram reverter a sua transição. Possíveis motivos para reversão do processo transicional incluem a exposição a discriminação (23%), os inquiridos se sentirem mais confortáveis ao se identificarem conforme o seu sexo designado à nascença (60%), medos relacionados com possíveis complicações médicas associadas ao processo de transição (49%) e os indivíduos concluírem que a causa da sua DG estava relacionada com motivos distintos da incongruência de género, nomeadamente trauma, abuso ou uma doença mental (38%)”, é realçado, sendo que “a maioria da população em estudo (55%) refere achar que não recebeu uma avaliação adequada por parte do seu médico antes de iniciar o processo de transição”.
“Quando abordamos este tema no contexto pediátrico, o mesmo reveste-se ainda de maior sensibilidade. No passado, e durante demasiadas e penosas décadas, os adolescentes com ‘Não Conformidade de Género’ eram alvo de terapias comportamentais e psicodinâmicas com objetivo de se identificarem com o sexo designado ao nascimento”, escreveu Miguel Saraiva, coorientador de Eduarda Rosas e Interno de Formação Específica em Endocrinologia e Nutrição no Centro Hospitalar Universitário do Porto, juntamente com Teresa Borges, Assistente Graduada de Pediatria do CMIN (Centro Materno Infantil do Norte – CHUPorto), na rubrica Disforia de Género na Adolescência, em setembro de 2022, reforçando esta ideia em declarações ao i.
A identidade de género dos adolescentes
De acordo com uma médica do CHUPorto, existem aproximadamente entre 10 e 15 crianças em acompanhamento em consulta. Relativamente aos adultos, num ano e dois meses, já há 187 pessoas em acompanhamento. “É um número muito bom e vai aumentar cada vez mais”, observa. “Temos a agenda de primeiras consultas preenchida até ao verão do próximo ano”, garante. “Temos 121 homens trans e 56 mulheres trans”, diz. “Temos uma média de 27 anos, com o mínimo de 18 e máximo de 60 nas mulheres trans. Nos homens trans, temos um média de 25 anos, com o mínimo de 18 e o máximo de 54”, informa. O i também contactou o Centro Hospitalar e Universitário de Coimbra mas, até à hora de fecho desta edição, não obteve qualquer resposta.
Mas de que forma este tipo de casos são tratados nas escolas?
A evolução da psicologia escolar, atualmente, está a caminhar no sentido de promover nos contextos educativos, um modelo mais ecológico, sistémico e preventivo. Segundo Sara Caeiro, psicóloga Educacional, “é emergente implementar programas de promoção de bem estar psicológico onde sejam debatidos vários temas como (discriminaçao sexual ou de género, depressão, ansiedade, violência no namoro e escolar, etc)”. Pela sua própria experiência, são os próprios adolescentes que solicitam os especialistas para abordar estes temas, nomeadamente, “atração e orientação sexual”.
A literatura sublinha a importância do papel dos vários profissionais de educação e de todos os agentes educativos, na promoção de práticas educativas que vão contribuir para a promoção da Inclusão, da Saúde Psicológica e do Sucesso Educativo: “Penso que as escolas cada vez mais devem preocupar-se em conhecer melhor os seus alunos, uma vez que, os estabelecimentos de ensino têm de estar preparados para todo e qualquer tipo de aluno, incluindo os mais vulneráveis. É muito importante que a comunidade educativa possa ver o aluno no seu todo, valorizando o seu talento, competências e características individuais”, alertou, acrescentando que todos nós sabemos que a sexualidade “está ligada ao desenvolvimento do indivíduo” e que, durante a adolescência “é normal possuir pensamentos sexuais e atrações que deixam os adolescentes confusos”. “É normal, estarem atraídos ou terem pensamentos sexuais sobre pessoas do mesmo sexo ou do sexo oposto”, garantiu.
Por sua vez, Alexandre Praça, professor numa escola pública em Lisboa, a transexualidade não é abordada nas escolas, salvo algumas exceções. “Ainda é tabu”, defendeu. Porém, explica, a temática tem evoluído ao longo dos anos visto que “tem surgido essa necessidade, pelos casos que têm surgido”. Na sua escola vão surgindo, a cada ano, “alguns possíveis casos de transexualidade”, relatados sempre na primeira pessoa. Estes casos têm sido abordados pelos professores “com alguma abertura e respeito”, nomeadamente, diz o docente, pelo diretor de turma, “o qual tem o papel preponderante de o comunicar”.
Por incrível que pareça, o termo não binário é mais comum que o termo transgénero: “Julgo que a maioria dos professores respeita a opinião de adolescentes ‘confusos’”.
Para si, existe um grande perigo na “confusão” da identidade do adolescente – A Moda. “Alguns julgam-se homossexuais, futuros transgéneros, não binários por aceitação da sociedade. Este facto não é assim tão linear. Apesar de uma consciência liberal e de uma legislação a favor, a aceitação é quase nula, nomeadamente pelos entes mais diretos”, lamentou, sublinhando que os pais e familiares “são o maior entrave”. “Apesar de liberais, os quais relatam aceitação perante os seus filhos, não é verdade. Os próprios adolescentes queixam-se apenas dos seus mais próximos, inclusive, irmãos”, acrescentou.
Neste momento – confidencia –, convive com um caso especial de uma aluna de 13 anos de seu nome Carolina (nome fictício) que solicitou ao diretor de turma que fosse tratado por um nome indiferenciado (tão masculino quanto feminino), contra a vontade dos pais. O diretor de turma comunicou esta vontade a todos os professores. “Por respeito, todos nós tentamos tratá-lo da forma como ele solicitou”, garantiu, admitindo contudo que por vezes “não é fácil”, só pelo facto de ser uma turma com 28 elementos e, inconsciente, se tratarem os alunos por pelo seu nome próprio. Apesar da escola onde está inserido ser uma escola de “elite” (bastante conservadora), não há nenhum colega que o trate pelo seu nome, e apesar de ser uma rapariga, todos o tratam por “ele”. “Muito interessante. Eu próprio já me estou a acostumar a esse facto, mesmo sabendo que os pais não o aceitam”, revelou.
A gestão do pais
Catarina Beato é mãe de quatro filhos. O mais velho, com 20 anos, assume-se como não binário: “Uma das primeiras conversas sérias que tive com o me filhe (prefere ser tratade com pronomes neutros) sobre isto de sermos homens ou mulheres foi exatamente porque isso não define coisa nenhuma. Não existe roupa de menina e roupa de menino, não existem profissões de menino ou menina, não existem atitudes de menina ou menino”, revela ao i, acrescentando que ela mesma cresceu na angústia de não se sentir “suficientemente feminina”. “Sei como isso me magoou”, lembrou a mentora de relações e influencer. Por isso, quis ter essa conversa assim que possível.
Segundo a mesma, é verdade que masculino/feminino é uma descrição binária que pode servir a alguns e ser importante no seu processo de definição. Contudo, defende, esta nunca deve ser uma condicionante nem um “preto/branco da vida”. “O não reconhecimento nesta divisão, ser ‘não binário’, é um lugar muito fácil de compreender, para mim como pessoa. Como mãe os maiores desafios foram apenas aprender a escrever sem género (uma aprendizagem que vai ficando cada vez mais fácil) e aceitar que o nome que escolhemos pode não ser aquele que faz sentido”, rematou.
Catarina Beato é membro da única organização de pais de LGBTI em Portugal – AMPLOS – há um ano. Segundo a sua presidente, Manuela, a associação foi criada em 2009, com a principal missão de desenvolver ações que fomentem o respeito pela diversidade de orientação sexual e identidade de género; programas de participação cidadã pelas causas LGBTI+; ações de aconselhamento dirigidas a pais e familiares, conducentes ao acolhimento e integração, de pessoas LGBTI+, na família e na sociedade, assim como em ambiente laboral, comunitário e escolar. “Eu entrei para a associação em 2010, após um dos meus filhos ter-se assumido como gay”, contou ao i. A atual presidente acredita que “é muito importante os pais perceberem que não estão sozinhos, que existem mais famílias com as mesmas dúvidas”. E, de acordo consigo, é esse mesmo sentimento que os faz entender e mudar o seu ponto de vista. “O apoio da família é fundamental. A família devia ser sempre o porto seguro, onde sabemos que seremos sempre acolhidos , mesmo quando tudo o resto não corre bem. O nosso dever enquanto pais deveria ser sempre amar e respeitar os nossos filhos/filhas/filhes, E quando não percebemos as questões que vamos encontrando no caminho, pedir ajuda e perceber que estas questões não são uma escolha mas sim uma característica de cada pessoa”, explicou.
Interrogada sobre as principais dificuldades que os pais enfrentam quando querem ajudar e compreender os filhos, Manuela acredita que aquilo que mais ressalta é o medo da discriminação e não saber como falar com os outros (avós, amigos, família alargada) sobre estas questões e trabalhar os preconceitos que nos foram incutindo durante anos.
Hoje, chegam à organização pessoas de todo o país. Desde a pandemia, lembra, houve um aumento exponencial de pedidos de ajuda.