Longe vão os dias de rock ‘n’ roll intenso de Iggy Pop, em que o músico rebolava por cima de vidros partidos ou se autoimolava em cima de palco, esguichava sangue para cima do público ou exibia o seu pénis durante os espetáculos. Mas o seu espírito selvagem continua vivo.
James Newell Osterberg Jr., também conhecido como o Padrinho do Punk, um dos mais influentes artistas da história da música moderna, lançou, no passado dia 6 de janeiro, o seu 19.º disco de originais a solo. Every Loser mostra como o homem de 75 anos, apesar de revelar estar um pouco mais domesticado, com um açaime patrocinado pelo peso do tempo, ainda consegue soltar o seu espírito indomável quando é necessário.
Acompanhado por um grupo de músicos de alto renome, que inclui o baixista dos Guns ‘n’ Roses, Duff McKagan, o baterista e ex-guitarrista dos Red Hot Chili Peppers, Chad Smith, e Josh Klinghoffer, o baterista dos Blink-182, Travis Barker, o guitarrista dos Pearl Jam, Stone Gossard, ou o falecido baterista dos Foo Fighters, Taylor Hawkins, e com a ajuda do produtor Andrew Watt, vencedor do Grammy de melhor produtor em 2021, que trabalhou com uma variedade de artistas desde Justin Bieber, Miley Cyrus, Ozzy Osbourne, Elton John ou Eddie Vedder, Iggy Pop tentou apresentar uma versão atualizada das músicas rock sobre excessos que o transformaram na lenda que temos estado aqui a descrever.
Uma das músicas que melhor exemplificam esta sensação é Strung Out Johnny, que utiliza a personagem Johnny, que já tinha ganho vida na icónica Lust for Life, música do disco com o mesmo nome, lançado em 1977, eternizada na cena de abertura do filme Trainspotting, e que representa um “jovem universal”.
“O Andrew é um produtor, músico e escritor de primeira linha. Quando ele me enviou esta música, colocou um pequeno título provisório nela, Strung Out Johnny”, recordou o músico à Apple Music. “Eu pensei: ‘Isto é um assunto sobre o qual eu sei umas quantas coisas. Eu poderia cantar sobre isso’. Mantivemos o título. Estou a cantar para o arquétipo de Johnny, um jovem universal. Eu queria cantar para ele sobre como é a vida – passo um, passo dois, passo três, e depois estás lixado. Mas queria colocar-me na canção, para que a música fosse um pouco mais calorosa e sincera”, explicou.
Na faixa, Iggy Pop canta sobre um assunto muito presente na sua obra e na sua vida, o vício e o consumo de drogas. A introdução de Strung Out Johnny começa com uma voz distante a ameaçar, “Get out of here, Iggy”, enquanto este suplica, “Come on now, fix me up”.
O músico fala sobre como é fácil ficar preso neste vício, “Love becomes compulsive / It’s wiser to say no / God made me a junkie / But Satan told me so”, e como se pode tornar num hábito destrutivo, “First time, you do it with a friend / Second time, you do it in a bed / Third time, you can’t get enough/ Then your life gets all fucked up”.
Para alguns críticos, este feroz regresso ao passado de Iggy Pop foi muito bem-vindo.
“O essencial do disco está nas nove canções que mostram que o Pop ainda é uma das vozes mais vitais da música. Sem nenhuma preocupação com seu legado, Pop é tão solto, engraçado e cativante em Every Loser como sempre foi”, escreve Tyler Golsen da Far Out Magazine. “Sempre que canta sobre urinar ou expor o seu pénis, sentimos que ele poderia voltar a fazer isso da mesma forma que chocava o público de Detroit nos anos 1960”. E continua: “Iggy Pop ainda é uma força imprevisível da natureza”, acrescentando que “qualquer um que precise de ser lembrado disso precisa ouvir Every Loser o mais rápido possível”.
Mas nem todos partilham esta opinião. Kitty Empire, crítica do Guardian, que acusa o artista de se deixar “arrastar” comercialmente pelos seus célebres convidados resultando num disco “desnecessário e retrógrado”.
“Ninguém quer negar a James Newell Osterberg Jr. o sucesso comercial ou uma existência confortável. Mas este projeto parece estranhamente desnecessário e um pouco retrógrado. Em New Atlantis, na qual Pop elogia Miami, cidade onde mora atualmente, como “uma bela prostituta de uma cidade” onde “um homem pode ser ele mesmo”, não soa muito bem em 2023”, justifica a crítica. “Quando as baladas desoladas (Morning Show) e os interlúdios de spoken-word num disco de Iggy Pop são as faixas às quais desejamos voltar, isso quer dizer alguma coisa. Parece que Pop está a tentar imitar-se a si mesmo”.
Uma vida nova Quando surgiu em cena com os The Stooges, Iggy Pop e os seus companheiros influenciaram toda uma nova geração com as possibilidades de criar uma música pesada, crua e que refletia a sua existência decadente, ou até mesmo com os discos que criou em colaboração com David Bowie, The Idiot e Lust for Life, ambos lançados em 1977. No entanto, por muito inovadora que fosse esta forma de se exprimir, o seu modo de vida quase destruiu o músico de Ann Arbor.
“Tenho de deixar de viver assim, preciso de me desintoxicar”, recordou, em entrevista à Rolling Stone, sobre a decisão que mudou a sua vida em 1983. “Via o fim a aproximar-se. Tinha os dentes a cair, os tornozelos inchados, a minha música estava a ficar uma porcaria. Não estava contente comigo mesmo, nem estava a fazer ninguém feliz”.
Depois de diversos anos a lançar álbuns desinteressantes, o presente século foi mais simpático com Iggy, marcado pelo regresso dos Stooges, que não atuavam juntos desde 1974, e assinaram diversas tours, com passagem por Portugal, e culminou no disco Ready to Die (2013), ainda que este não tivesse sido tão elogiado quando os trabalhos originais da banda.
Ao longo dos anos, o músico soube reinventar-se e explorou diversos estilos nos seus discos mais recentes, por exemplo, Après (2012) é um disco de versões composto maioritariamente por músicas francesas e cantadas nesta língua. Já Post Pop Depression (2016) é um álbum de rock moderno produzido por John Homme, líder dos Queens of the Stone Age, Free (2019) contém diversas passagens de Free Jazz, e ainda colaborou com performances de spoken word em discos de artistas mais associados a música eletrónica, como os Underworld ou Oneohtrix Point Never, dando ainda bom uso à sua voz grave em diversos programas de rádio na BBC, onde partilha uma seleção eclética de artistas.
Depois de ter oferecido um reportório tão influente e diverso, e de ter sobrevivido a um consumo de substâncias que teria ceifado a vida a um mero mortal, parece uma bênção que “Todos os Falhados” ainda possam continuar a ouvir novos objetos de arte da nova vida deste “Idiota”.