por Luís Ferreira Lopes
Ex-Assessor para Empresas e Inovação do Presidente da República e Ex-Editor de Economia da SIC/SIC Notícias
As economias europeia, norte-americana e chinesa anseiam por um desfecho da guerra na Ucrânia ainda este ano. Putin lança nova ofensiva, em final de janeiro – e decerto assistiremos a mais vagas até à primavera –, tentando aproveitar: 1. Hesitações dos aliados ocidentais de Zelensky no fornecimento de armamento supostamente decisivo para Kiev; 2. A preocupação europeia com o fornecimento de energia, a inflação a níveis de 1992 e o impacto do aumento das taxas de juro dos bancos centrais nas famílias e empresas; 3. Salvar a face perante o descontentamento da população russa com o prolongamento da invasão falhada da Ucrânia, isto apesar do controlo total dos media por Moscovo. Bruxelas e Washington assistem, avisam e dão o apoio possível a Kiev, sempre sob o espetro da ameaça nuclear russa. Mas Xi Jinping pode ser a solução.
O Presidente da República Popular da China (RPC) conhece a perícia dos seus aliados russos a jogar xadrez, mas a milenar paciência chinesa pode fazer toda a diferença neste Ano Novo do Coelho. Basta Pequim querer e pode obter ganhos reais com a paz, numa conjuntura desfavorável (de momento) para a economia e a população da China. O crescimento da economia chinesa é lento devido aos efeitos de três vagas sucessivas de covid, retração do consumo, taxa de poupança a níveis recorde, queda nas exportações para o mercado europeu, reduzida margem do Estado para maior despesa pública para fomentar o investimento, receitas fiscais baixas das administrações provinciais, setor da construção estagnado e elevado desemprego jovem. Além disso, o modelo económico chinês baseia-se em fortes exportações e captação de investimento estrangeiro (ex: indústria europeia), mas o todo-poderoso Xi Jinping começa a sentir na pele os efeitos da invasão russa à Ucrânia na economia global (logo, na queda das exportações chinesas) e do longo período de pandemia. Portanto, a ansiada recuperação económica pode ser, afinal, mais lenta do que se previa, a menos que o líder chinês saiba jogar xadrez melhor do que Putin.
A China é hoje o principal cliente de gás e petróleo da Rússia, depois do bloqueio europeu e ocidental decorrente do ataque à Ucrânia. Está decerto interessada nas riquezas minerais, agroindustriais e nas novas rotas marítimas no Ártico em degelo. Com Putin fragilizado pela frente de guerra na Europa de Leste e dependente de Pequim, Xi pode aumentar a intensidade do abraço de urso e exigir a Moscovo condições contratuais ainda mais favoráveis a médio prazo para o fornecimento de gás e petróleo. Basta ameaçar que Pequim poderá estar interessado no espaço vital da Rússia a Oriente (ex-URSS), em especial num maior acesso ao Polo Norte, e lembrar que ocuparia metade ou um terço da Rússia sem desperdiçar uma munição, com o esforço de guerra russo concentrado na Ucrânia e sem capacidade para reagir a um avanço rápido da China. E não seriam os EUA, a União Europeia ou a NATO a defender a Rússia, mas isso nem seria preciso recordar.
Xi e Vladimir talvez não saibam que foi um português, o missionário jesuíta Tomás Pereira (1645-1708), que influenciou a corte de Kangxi a celebrar, em 1689, o tratado de Nerchinsk que é o primeiro acordo sino-russo. Esta é a base institucional de um pacto de não-agressão que dura há séculos, mesmo nas agitadas últimas décadas pós Gorbachov e Deng Xiaoping. As duas potências aprenderam a respeitar-se, mas há variáveis que não são controláveis quando um líder fica fragilizado no poder e possui armas atómicas, assim como não se consegue domesticar um animal selvagem ferido de morte. A China sabe que, no curto prazo, tem ganho com a guerra (ex: energia mais barata), tal como os vendedores de armamento e de energia de França e dos EUA. Xi Jinping também sabe que, a médio ou longo prazo, ganhará com o fim da guerra na Europa e pode fazer xeque-mate a Putin, assumindo-se como líder da paz mundial, se quiser. Apostaria que o primeiro a cumprimentá-lo seria o católico português António Guterres, secretário-geral da ONU.
Haverá analistas a afirmar que Pequim nunca será um player mundial da paz porque não desistirá de ocupar ou controlar Taiwan. Mas, num cenário do regresso da velha realpolitik, o que fariam os EUA, se a RPC invadisse Taiwan, quando a guerra na Ucrânia se agudizar no final deste inverno, com mais recursos de Washington alocados a Kiev? Biden enviaria mesmo os porta-aviões do Pacífico para o sudeste da China? Quem estaria interessado numa guerra nuclear mundial? A Casa Branca fecharia ou não os olhos às jogadas de xadrez do Grande Palácio do Povo, se também ganhar com a paz e uma rápida retoma?
Quanto ao cenário económico mundial, para se evitar a recessão em 2023, não tenhamos dúvidas: apesar da descida de preços das matérias-primas e da recente tendência de abrandamento da elevada inflação (que tem levado à subida das taxas de juro do BCE e da FED e a um efeito social que demorará a amortecer), só será possível ter um segundo semestre de recuperação da economia na Europa, nos EUA e na China, se houver um acordo de paz na Ucrânia e se Pequim e Washington alinharem uma estratégia de não-agressão mútua e que salve a face da Rússia, com ou sem Putin (com ajuda de Berlim, Paris e Ancara?). Os líderes mundiais ainda terão abertura de espírito para, de novo, ouvir as sempre atuais lições de pragmatismo de Henry Kissinger?