Este ano três filmes portugueses tinham hipóteses de fazer história. Eram candidatos efetivos à nomeação para um Óscar a curta de ficção ‘O lobo solitário’, de Filipe Melo, bem como as curtas de animação ‘O Homem do lixo’, de Laura Gonçalves, e de ‘Ice merchants’, de João Gonzalez. Foi esta última que conseguiu esse marco, levando o cinema português onde nunca antes tinha ido. O jovem cineasta de 26 anos, nascido no Porto, assina a realização e a banda sonora do filme e divide a animação, em 2D, com a polaca Ala Nunu. A cerimónia de entrega das estatuetas está marcada para 12 de março.
«Estou completamente sem palavras. Muito obrigado a todos pelo amor. Vou escrever alguma coisa quando as coisas estiverem mais calmas e eu ‘voltar à Terra’ e conseguir processar isto. Obrigado e parabéns a toda a equipa!», escreveu João Gonzalez no Instagram, pouco após saber da nomeação em direto de Los Angeles, nos Estados Unidos.
O filme de João Gonzalez já passou por mais de uma centena de festivais de cinema, obteve 44 prémios e foi visto por 8.425 espectadores, segundo dados da Agência da Curta-Metragem vistos pela Lusa. Mas já antes de ser nomeado para um Óscar fora nomeado para os Prémios do Cinema Europeu, tendo ainda sido sido galardoado no Festival de Cannes, vencendo o prémio Leitz Cine Discovery destinado à melhor curta-metragem a concurso. Já então fora o primeiro cineasta português a receber tal distinção desta secção paralela.
Não possuí diálogos, arrancando com a imagem de uma casa recôndita numa montanha, à beira de um precipício. Centra-se na vida de um pai e um filho que, por viverem tão isolados, têm de todos dias saltar de paraquedas para ir vender o gelo que produzem durante a noite no sopé da montanha. É a obra de um cineasta inspirado pela solidão, segundo o próprio,
«Gosto de pegar em realidades completamente surrealistas e bizarras, que normalmente costumam ser inspiradas por visuais que me vieram inconscientemente, ao adormecer», explicara Gonzalez na altura, em entrevista à Comunidade Cultura e Arte. «Sei que essas realidades se relacionam comigo pelo sentimento que despertaram ao visualizar as imagens, então gosto de recorrer a elas como metáforas para falar sobre algo que me é próximo e que me toca».
Não espanta que Gonzalez tenha feito questão de tratar da banda sonora de ‘Ice merchants’, tendo contacto com a música desde muito pequeno, por intermédio do pai, também pianista. Aliás, na ausência de diálogos a banda sonora carrega muito esta curta tão aclamada pela crítica internacional, conseguindo transformar experiências como a rotina e saudade em algo que agarra audiências. «Utilizo a música como inspiração», explicara Gonzalez. «Começo a compor a banda sonora, isso dá-me ideias para a narrativa que, por sua vez, inspira o desenho e vice-versa. É através desse ping-pong que começo a construir a história».
O jovem cineasta português, bolseiro da Fundação Calouste Gulbenkian, fizera a licenciatura na Escola Superior de Media Artes e Design (ESMAD), cá por terras lusas, antes de ir para o Reino Unido fazer um mestrado na Royal College Art. Agora, veremos como o seu trabalho se dá em Hollywood, estando na corrida para o Óscar de melhor curta de animação com o filme ‘The Boy, the mole, the fox and the horse’ (Reino Unido/Estados Unidos), ‘The flying sailor’ (Canadá), ‘My year of Dicks’ (Islândia/Estados Unidos) e ‘An ostrich told me the world is fake and I think I believe it’ (Austrália).
«Vou ter de estar em Los Angeles a 13 de fevereiro, para um encontro com todos os nomeados, mas agora vamos fazer um planeamento com mais calma», garantiu Gonzalez ao JN, após saber da nomeação a um Óscar. A sua curta tão bem-sucedida «começou como um filme de escola e foi possível realizá-lo com a ajuda de uma equipa incrível», contou. «É um momento surreal que vai levar algum tempo a processar».