Ainda me lembro da conversa tida há muito tempo com um amigo, infelizmente já desaparecido, que me apresentava um pertinente enquadramento dos Papas que tivemos nos últimos anos.
Na opinião dele, de um lado estavam os ‘intelectuais’ como Pio XII, Paulo VI e Bento XVI, e do outro os ‘Papas do povo’, tais como João XXIII, João Paulo II e agora o nosso tão querido Papa Francisco, de quem sou particular admirador.
Achei curiosa esta ‘divisão’, que faz todo o sentido e com a qual concordo. Dos nomes citados, Bento XVI foi o que mais recentemente nos deixou, pelo que a recordação da sua obra ainda está bem viva na nossa memória.
Joseph Ratzinger foi, sem sombra de dúvida, um dos maiores teólogos da atualidade, e o seu papel como Prefeito da Congregação para a Doutrina da Fé, que desempenhou durante largos anos, faz dele uma figura ímpar na história da Igreja. Tenho em meu poder umas das suas obras, Diálogos sobre a Fé, que li e reli, achando extraordinária a forma como nos consegue transmitir a sua mensagem.
Quanto ao seu pontificado como Bento XVI, não me compete analisá-la, nem sou a melhor pessoa para o fazer. Registo apenas a atitude inteligente e de grande dignidade que foi a sua resignação, quando concluiu que não podia mais continuar a servir a Igreja como ela exigia de si. Nos dias de hoje, é raro encontrar personalidades assim. O que mais se vê, é precisamente o contrário: pessoas agarradas aos lugares que ocupam, julgando-se insubstituíveis, não sabendo reconhecer os limites das suas capacidades.
Insisto neste aspeto, já por mim referido neste espaço: saber retirar-se a tempo é uma grande virtude e uma prova de inteligência.
Com base no testamento espiritual de Bento XVI, datado de 29 de agosto de 2006 mas só agora conhecido, acho grandioso o seu apelo a «todos os que na Igreja foram confiados ao seu serviço, para permanecerem firmes na fé numa altura em que a ciência e a pesquisa histórica são capazes de oferecer resultados irrefutáveis, em contraste com a fé católica».
Ao conhecer o texto, interroguei-me como tem sido o meu comportamento enquanto médico, um profissional da ciência e ao mesmo tempo um homem de fé.
Esta questão, aliás, tem-me sido colocada por variadíssimas pessoas, desde doentes a amigos e conhecidos, e até em entrevistas televisivas. Será possível conciliar as duas coisas? Um homem da ciência não pode ter fé? Em que medida um médico com fé pode ajudar mais os seus doentes?
Abordar um tema tão delicado como este exige, como é natural, a maior prudência e bom senso. Em minha opinião, são coisas distintas e uma não invalida a outra. A ciência dita as suas leis, a fé não se discute, aceita-se. Ou se tem ou não se tem. Ao longo da minha vida clínica, nunca impus as minhas convicções nem a doentes nem a ninguém, mas também nunca as escondi quando questionado sobre o assunto.
Disseram-me um dia que «um homem com fé é um homem feliz». É natural que, de vez em quando, eu deixe transparecer esse estado de espírito. Um conhecido jornalista, afirmando-se agnóstico, comentava um dos meus artigos dizendo que transmitiam uma «fé contagiante». Ao que lhe respondi: «Tem mesmo a certeza do seu agnosticismo?».
Recordo igualmente o episódio em que um padre, em plena consulta, descrente do prognóstico da sua doença, me dizia: «Os médicos no hospital disseram-me que, no meu caso, o tratamento nem sempre resulta». Depois de o ouvir falar, encarei-o olhos nos olhos e disse-lhe calmamente: «Acima das decisões dos homens estão as decisões de Deus. Temos que confiar nos médicos, mas deixar tudo nas mãos de Deus». Posso não ter feito nada em termos clínicos – mas acho que fiz muito em termos psicológicos: naquele caso, era dessa força anímica que ele estava a precisar.
Talvez por tudo isto eu olhe agora para Joseph Ratzinger com outros olhos. Vejo nele alguém com quem me identifico na doutrina da fé. Faço minhas as suas palavras expressas no final do seu testamento, pedindo a Deus que «o acolha nas moradas eternas».
(À memória de Joseph Ratzinger – Papa Bento XVI)