Documentos secretos, abandonados desleixadamente por Joe Biden na garagem da sua casa em Delaware ameaçam minar o resto da sua presidência. A saga, que se arrasta há semanas, não podia ser mais desastrosa. O Presidente, que se queixou ferozmente do desleixo do seu antecessor por tirar centenas de documentos secretos da Casa Branca, agora enfrenta acusações de hipocrisia. E mesmo esta quarta-feira, quando se descobriram mais umas dezenas de documentos secretos em casa do vice-presidente de Trump, Mike Pence, era difícil tirar da cabeça o atual Presidente. Seja pela ironia do escândalo ou pelos detalhes marcantes, como o facto de os documentos perdidos de Biden terem sido encontrados junto ao seu Corvette Stingray, um carro vintage verde garrafa, saído dos anos 60, que o Presidente fora fotografado a conduzir de óculos escuros.
O escândalo tomou tais proporções que os índices de confiança do eleitorado em Biden – que sempre se tentou mostrar como sendo um político sério, cuidadoso, à moda antiga – colapsaram. No início do ano, antes do escândalo, 42% dos eleitores consideravam o seu Presidente honesto e confiável, poucas semanas depois são apenas 34%, mostram sondagens do YouGov. Agora 46% dos americanos acham-no desonesto, quando antes eram só 39%, e mais de metade dos americanos desaprovam a sua governação.
A polémica traz algum conforto aos republicanos. Estes ainda recuperavam da desilusão que foram as eleições intercalares e andavam ocupados com disputas internas. Especulava-se que Trump poderia ser afastado da liderança do partido caso Ron DeSantis, governador da Florida, a estrela em ascensão, avançasse como potencial candidato presidencial em 2024. Na Câmara dos Representantes, a maioria republicana tinha-se recentemente revelado incapaz de eleger Kevin McCarthy como líder durante sucessivas rondas de votação, até este fazer uma série de cedências de maneira a acalmar as fações mais radicalizadas do partido.
Agora, os dirigentes republicanos unem-se em torno de troçar de Biden. Enquanto os democratas desesperam com este erro gratuito do Presidente.
Os dirigentes democratas «experienciam a requintada tortura que vem com a lenta divulgação de informação politicamente danosa», que tem feito o escândalo arrastar-se no ciclo mediático, descreveu Jonathan Alter, num artigo de opinião no New York Times.
«Agora ele está completamente metido no barril», continuou o correspondente político, numa referência à expressão idiomática: ‘É como pescar num barril’. O Presidente «está a ser visado por poderosos comités do Congresso, repórteres agressivos à procura de furos e de um conselheiro especial metódico, Robert Hur, equivalente a Jack Smith, o conselheiro especial que investiga Trump», avaliou. E muitos americanos, «que têm coisas melhores que fazer com o seu tempo que ponderar sobre as nuances da manutenção de registos presidenciais podem casualmente concluir que ambos são políticos mentirosos e descuidados», salientou Alter.
Equivalências e hipocrisia
A cadeia de acontecimentos que levou Joe Biden ao «barril » tem tido novidades quase diárias. A mais recente foi a descoberta de dezenas de documentos secretos em casa de Mike Pence no seu estado natal, o Indiana. O antigo vice-presidente entregou-os ao FBI, que está a investigar o caso com o Departamento de Justiça, avançou a CNN. Segundo fontes próximas de Pence, este pediu a um advogado especializado neste tipo de documentos para fazer buscas a sua casa, para encontrar o que pudesse ter por lá perdido – algo que outros antigos dirigentes da Casa Branca estarão a fazer também, para se adiantar a escândalos futuros.
De certa forma, foi isso que a Administração de Biden assegurou ter tentado fazer quando foram descoberta a primeira fornada de documentos secretos perdidos, no Penn Biden Center, um escritório em Washington, em novembro. O silêncio sobre o caso durou semanas – as eleições intercalares seriam pouco após a descoberta – e não ajudou à sensação de que havia algo a esconder. E o facto das buscas terem demorado, sendo descobertas mais duas vagas de documentos após a revelação do caso, manteve as atenções mediáticas viradas para o Presidente.
O Departamento de Justiça fez questão de nomear imediatamente um conselheiro especial para investigar o caso. Até optaram por Robert Hur, que fizera parte da Administração Trump, para dar uma imagem de imparcialidade da investigação. Mas os estragos estavam feitos. É que estes inquéritos tendem a ganhar uma vida própria. E junto do público, a grande acusação contra Biden talvez seja a de hipocrisia, pela forma como criticou Trump quando decorreu uma rusga do FBI à sua mansão de Mar-a-Lago, em agosto, também por ter na sua posse documentos secretos.
Boa parte da imprensa americana apontou as diferenças significativas entre os dois casos. Sobretudo o facto de o antigo Presidente ter admitido que ficou com documentos secretos propositadamente – eram «recordações fixes», chegou a escrever na sua rede social, a Truth Social – e desafiado ordens judiciais para os entregar, enquanto tanto Biden como Pence cooperaram de imediato com as investigações.
«As diferenças entre como cada um dos presidentes respondeu às revelações são certamente notórias», considerou Kaleigh Rogers, repórter do FiveThirtyEight. «Mas sinto que foram enfatizadas demais. No fim de contas, eles ambos fizeram a mesma coisa errada, que foi ficar com documentos que não deviam manter».
Já a imprensa conservadora está a adorar, notando a diferença na reação dos media liberais ao escândalo de Biden quando comparado com o horror face às alegações contra Trump. Dado que se descobriu que o Presidente guardava documentos secretos fora da Casa Branca, «quando é que o FBI faz buscas em sua casa?», questionava uma manchete da Fox News, citando o congressista republicano Troy Nehls, do Texas.
O certo é que agora os republicanos, sobretudo os mais ferozes defensores de Trump, têm munições de sobra para se queixar de tratamento injusto. Já alguns democratas temem que o escândalo tenha tornado Biden um candidato ainda menos viável em 2024, dado que já se especulava quanto a outros potenciais candidatos devido à sua idade avançada. Contudo, no que toca ao próprio Presidente, não mostra grande vontade de ceder, tendo até começado a auscultar alguns dos mais ricos doadores democratas para preparar a campanha presidencial, contaram fontes próximas à Reuters, esta quinta-feira.