Por Elsa Severino, arquiteta paisagista
«Há uma mão-cheia de coisas à espera de acontecer. O copo quase a partir. O prazo quase a acabar».
Excerto de poema de João Luís B. Guimarães
Não tenho grande simpatia por megaeventos, sejam eles de que natureza forem, e também não concordo inteiramente que um evento da Igreja Católica seja financiado pelo Estado. Posto isto, que pouco interessa para o caso, mas sendo arquiteta paisagista, com alguma experiência no projeto de parques urbanos em geral e/ou construídos sobre aterros sanitários, gostaria de tecer algumas considerações sobre o assunto.
Como é sabido, a cidade de Lisboa foi escolhida a 27 de janeiro de 2019, no Panamá, pelo Papa Francisco para acolher a Jornada Mundial da Juventude.
A autarquia de Lisboa tomou então a decisão de construir um parque urbano para receber este evento, e para tal recuperar o aterro sanitário de Beirolas, no extremo norte do Parque das Nações, dando continuidade à recuperação paisagística da zona ribeirinha oriental da cidade.
Uma decisão coerente com o processo de recuperação desta zona da cidade. No entanto, devido à nossa incapacidade de programar, a longo ou a médio prazo, aliada a um burocratização excessiva da administração pública, era imprescindível dar muita atenção à metodologia escolhida, e aos prazos necessários ao projeto e à construção da obra; esta seria uma obra difícil, dada a natureza do local – aterros sanitários, e ao programa exigente para acolher um tão elevado número de pessoas, além de Sua Santidade o Papa Francisco e a sua comitiva.
Decorreram quatro anos desde a nomeação de Lisboa, um prazo confortável para implementar um parque urbano, e construir todos os equipamentos julgados necessários, mas eis que chegados a janeiro de 2023 somos confrontados com uma obra atrasadíssima, um palco envolto em polémica, custos a disparar, além de Entidades desavindas e descoordenadas, acusando-se mutuamente na praça pública.
O público em geral, isto é, quem paga, insurge-se contra os elevados custos de construção, e mais do que isso contra os ajustes diretos feitos às empresas de construção civil, no valor de milhões de euros, ‘milhões de vezes’ acima do valor permitido por lei a um simples mortal. Lamento dizer, mas o prazo de quatro anos era totalmente viável para se fazer este parque, desde o projeto à fase final de obra, sem o recurso a este artifício – ajuste direto, de prazo em fim de vida. Gostaria no entanto de referir que 75 milhões de euros estimados para 100 hectares de parque, equivale a 75 euros o metro quadrado, valor que é muito aceitável para este tipo de obra. Acreditamos que o valor final não seja este, pois o prazo para a finalização da obra é muito curto o que vai empolar todos os preços. Aconteceu em todas as obras públicas das últimas décadas – no Centro Cultural de Belém o preço final foi 10 vezes superior à adjudicação, pese embora a mudança do programa para mais um teatro de Ópera que poucas vezes funcionou, segundo julgo saber; na recente polémica do Hospital Militar, em que o preço disparou, devido à contingência pandémica; na obra da Expo 98 em que os preços dos materiais subiam quase diariamente, devido à necessidade de acabar a obra a tempo da abertura da Exposição.
Estas derrapagens nos custos equivalem a biliões de euros subtraídos ao erário público, prejudicando acima de tudo os que ‘não têm palco’.
Quanto ao ‘palco da discórdia’, além do seu custo elevado, mas proporcional à área de construção, o problema reside na interpretação à letra do programa da Igreja, resultando num ‘prédio’ de vários andares, apetrechado de rampas, escadarias e elevadores, e não um equipamento unificador e transcendente, em relação com a paisagem e com o público, adequado a um parque urbano, para no futuro acolher concertos de música, espetáculos ao ar livre e eventuais celebrações cristãs.
Este equipamento, que derivou para um ‘Monte de betão e ferro’, tem o problema acrescido da sua estrutura de fundações, pois estamos perante aterros sanitários, havendo a obrigação de não danificar as bolsas dos resíduos, as quais libertariam descontroladamente gases e as águas lixiviantes em presença. Soube-se entretanto que até a solução apontada para as fundações do palco não é consensual entre os engenheiros portugueses.
A vegetação escolhida tem de ser adequada à situação de aterro, com especial cuidado na escolha das árvores. Os candeeiros de iluminação também deverão ter uma fundação acautelada, assim como toda a malha de drenagem da área será diferente doutra em solo natural.
Estes ‘jardins de glória’ estão mergulhados num caldeirão de pecados originais. A opacidade quanto ao projeto, aos custos e prazos de construção, todos eles desadequados; equipamentos caros, impositivos e esteticamente antiquados, falta de informação relativamente aos acessos, estacionamentos, plantações, iluminação pública e de segurança, além dos caminhos, praças, mobiliário de exterior, vedações, entre outros aspetos. Como se vê, a complexidade é demasiada para um curto período de tempo, o que vai desembocar na falta de qualidade da obra e num aumento exponencial dos custos. Após o evento a degradação do parque será muito significativa, devido ao excessivo número de pessoas que por ali passaram e à pouca compactação e coesão dos pavimentos e relvados, a existirem. Mais um contratempo das obras feitas num prazo irrealista, e para eventos de grande escala, como este.
Um dia teremos políticos cooperantes entre si, obras com contas certas, e os palcos serão ‘montes de oliveiras e azinheiras’, com sombras para todos…
Um dia…