Muitos são aqueles que esqueceram o nome de Peter Minuit. Mais ainda serão os que desconhecem por completo o nome de Peter Minuit. E, no entanto, Peter Minuit é um sujeito que merece ser recordado. Porque era um espertalhão de marca maior e não tinha vergonha em engazopar quem quer que seja. Era um negociador por natureza e tratou de deixar os índios Lenape com a cabeça às voltas por via das promessas que foi fazendo. Em conclusão: como membro importante da Companhia Holandesa das Índia Ocidentais comprou um pedaço de terra na costa atlântica da América por vinte e quatro dólares e mais uma meia-dúzia de bugigangas como apitos e espelhinhos ou o diabo que o carregue.
O lugar chamava-se Manhattan e não tardaria a abranger terrenos à volta formando a cidade de Nova Amesterdão. Manhattan antes de lhe terem simplificado o nome era Manaháhtaan, que na língua dos Lenape queria dizer qualquer coisa como Lugar Onde se Encontram Setas. Nada de muito imaginativo, como se pode ver, mas o facto aí está para demonstrar que até a falta de imaginação pode ser premiada – poucos serão os habitantes destes planeta redondo e apenas ligeiramente achatado nos polos que não conheçam Manhattan. A começar pelo Woody Allen.
Peter Minuit, pelo contrário, caído pelas escarpas abaixo dos poços do olvido podia ser um tipo espertíssimo mas ficou mais famoso por dar o nome a uma marca de tabaco para cachimbo. Sabe-se que nasceu em Wesel, na Alemanha, mas encontrar a data da sua vinda ao mundo já deu trabalho a muito boa gente sem que alguém tenha chegado a uma conclusão indiscutível. Enfim, algo entre 1850 e 1855. Sendo de uma família profundamente calvinista, natural de Tournoi, na atual Bélgica, acabou por nascer em Wesel porque os pais puseram-se a fancos e fugiram a bom tempo da maldita Inquisição Espanhola que, nessa altura, fazia valer com violência a sua suprema autoridade por todos os Países Baixos. Cresceu como um indivíduo bem visto pela sociedade local, sobretudo após a morte de seu pai, Johan, que o deixou à frente de vários ramos de negócios. Pode dizer-se também sobre Minuit (não deixa de ter a sua pilhéria chamar-se meia-noite) que se tornou um bom partido. Solteirinhas e solteironas, com viúvas pelo meio, faziam filas para caçar o nosso personagem mas já percebemos que ele de parvo não tinha nada. Ou seja: com tanta escolha tratou de casar com uma mulher mais rica do que ele, uma tal Gertrude Reids cuja fortuna serviu para Peter se estabelecer definitivamente como um mercador bastante poderoso. E, logo a seguir, num negociante de diamantes. Na Holanda não era conhecido pela versão francesa do nome: era o Peter Minnewit e ponto.
Em meados da década de 1620, Peter foi aceite como membro da Companhia Holandesa das Índias Ocidentais e não demorou muito para os cobiçosos chefes de tão gananciosa organização o enviassem para a colónia dos Novos Países Baixos, do lado de lá do Atlântico, onde se encontra agora Nova Iorque e os seus infinitos arrabaldes. Pouco dado a sentimentalismos embarcou com a alegria de um cachopo deixando Gertrude para trás sem grandes choraminguices. O seu trabalho na América consistia em coordenar o trabalho dos caçadores e dos comerciantes de peles que eram enviadas de volta para a Europa para serem vendidas a preços bastante escandalosos. Minuit não era apenas pouco dado a sentimentalismos como não dava grande importância aos princípios básicos da lealdade e da camaradagem. Em 1926 arranjou uma altercação das antigas com o seu chefe direto, Willem Verhulst, embrulhou-o numa série de trampolinices e conseguiu que os diretores da Companhia o pusessem no lugar do infeliz Willem. A
legremente tratava de apaziguar a sua febre de ambições.
A compra
A compra da ilha de Manhattan aos índios que nela habitavam fez de Peter Minuit uma daquelas personagens históricas incontornáveis a despeito de ter havido, se calhar, uma entidade divina que, embirrando com o figurão, o condenou ao quase anonimato. Diz a História, desta vez com maiúscula, que os índios aceitaram sem regatear os 60 florins que Peter lhes ofereceu em nome da Companhia das Índias. Os tais 24 dólares que os americanos contabilizam, embora não deva ser muito fácil estar a calcular o valor de cada uma das moedas há 400 anos. Enfim, vem nos registos comerciais da própria Companhia Holandesa das Índias Ocidentais que o negócio foi feito e testemunhado por um dos seus diretores, Pieter Janszoon Schagen, pelos tais 60 florins, acrescidos de mais algumas prendas que se imagina terem sido porcarias para enganar pacóvios, tendo o mesmo Pieter escrito uma carta datada de Novembro de 1926 para o grupo de administradores que exercia o seu poder à distância de um mar, lá na movimentada Amesterdão de uma época rica como poucas.
Para que o assunto não fique aí a boiar entre os 24 dólares e os 60 florins, acrescente-se que foi um historiador chamado John Romeyn Brodhead que publicou esses valores não havendo quem os pusesse em causa. Já o Instituto para a História Social de Amesterdão abriu o leque para valores mais modernos e concluiu-se que os tais 60 florins (ou 24 dólares) valeriam hoje algo como mil dólares. Um número tão redondinho que até dá para desconfiar. Uma coisa é mais certa do que todas essas contabilidades: foi um negócio do catano, lá isso foi!
Eis que, entretanto, os holandeses se veem metidos numa embrulhada com a qual decididamente não contavam, e nisto de negócios há que reconhecer que é gente que anda bastante à frente dos demais: os índios, tão alegremente vendedores da sua ilha, tinham uma noção muito particular de propriedade. Isto é, coisas como ar, água ou terra não eram sujeitas a uma pertença. Eram de todos e nunca houve um fulano que se tenha lembrado de pôr o assunto em causa. Peter Minuit, o homem que fizera um dos maiores negócios da História da Humanidade, estava à beira de se ver com as mãos a abanar e menos 60 florins com as bugigangas à mistura. Pelo caminho, Peter teve uma participação bastante efetiva na compra de outra ilha, Staten Island, numa troca que nem sequer meteu dinheiro pois os holandeses limitaram-se a despejar na frente dos vendedores chaleiras, gaitas de beiços, machados e umas centenas largas de cascas de ostra. E depois não queriam ter passado à eternidade como uns aldrabões de mão cheia… Pois…
Estando-se completamente nas tintas para as conceções etéreas dos índios em relação ao ar, à água e à terra, os holandeses ergueram uma fortificação capaz de fazer frente à habitual pirataria levada a cabo pelos ingleses: Fort Amesterdam. Instalada de maneira bem engenhosa na ponta da ilha de Manhattan tornava-se um ponto dominador sobre quem quisesse entrar pela baía do rio Hudson. Todos os Lenape que decidiram fazer frente à vontade de Minuit foram dizimados sem dó nem piedade: mais de mil foram chacinados para servirem de exemplo aos restantes. E mais uma vez a paz foi conquistada à custa de sangue. Nos anos que se seguiram a população dos Novos Países Baixos cresceu desmesuradamente, tal como a da urbe que começou a desenvolver-se em redor do forte e que ganhou o nome de Nova Amesterdão, assumindo o papel da capital da colónia. Em 1664 já a população dos Novos Países Baixos atingira os nove mil europeus, dos quais dois mil e quinhentos estavam instalados em Nova Amesterdão e cerca de mil e quinhentos noutro ponto militar, Fort Orange. Nessa altura já Peter Minuit estava debaixo de sete palmos de terra há que tempos (morreu em 1638), depois de ter assumido o cargo de juiz em Nova Amesterdão até cair em desgraça por via de uns negócios obscuros que mexeram com os cofres da poderosíssima Companhia das Índias.
Ainda teve a força de vontade suficiente para aceitar o convite do rei da Suécia para montar uma colónia sueca não longe de Nova Amesterdão mas o afundamento de dois navios carregados com colonos, um destruído por um furacão junto à ilha de St. Kitts e outro desfeito por uma terrível ventania ao largo dos Açores fez com que os suecos desistissem da empreitada. Ficara-lhes demasiado caro.
Os ingleses!
Ah! Os ingleses! Faltava aparecerem os ingleses nesta história de Nova Amesterdão que não tardaria a ser renomeada de Nova Iorque. Não há piratas como os ingleses, não há flibusteiros como aqueles que trabalhavam afanosamente em assaltos a navios de outras bandeiras sob o beneplácito da coroa britânica.
No dia 8 de Setembro de 1664, o governador holandês de Nova Amesterdão, Peter Stuyvesant, um mamífero muito pouco popular entre os seus governados, e mais um a dar nome a tabaco para cachimbo, sofreu a humilhação de ter de se render ao coronel inglês Richard Nicholls. Stuyvesant era de tal modo desconsiderado pelos seus que não houve verdadeira oposição à tomada de posse inglesa. Ou seja, eram bem mais os holandeses que preferiam ficar às ordens dos colonos britânicos do que aqueles que estavam para suportar o estilo tirano de Peter. Nesse mesmo dia, o coronel Nicholls fez descer do mastro principal da fortificação holandesa a bandeira da Coroa de Orange para que subisse em seu lugar a da Casa de York. E como fora o próprio Duque de York, mais tarde rei Jaime IV de Inglaterra e Jaime II de Inglaterra e Escócia, a patrocinar a invasão, Nova Amesterdão transformou-se oficialmente em Nova York. Até hoje.
Um rancho chamado Harlem
Tal como acontece com Peter Minuit, ninguém parece saber ao certo quando nasceu Peter Stuyvesant, apontando-se geralmente o ano de 1610. Já o local do seu primeiro berro sobre a Terra foi dado em Peperga, também chamada de Scherpenzeel, na região de Friesland, na Holanda. Por outro lado, ao contrário do seu homónimo, dedicou-se mais aos estudos do que às compras e vendas. Tinha fama de bom aluno e exibia facetas de uma inequívoca inteligência. Já quanto a escrúpulos, estamos conversados. Era daquele tipo de fidalgotes que depois de lhe serem feitas as autópsias os médicos legistas não encontram no cadáver nem um escrúpulo para amostra. Sendo também um mulherengo compulsivo não deixou passar em claro a beleza e formosura da filha do reitor da Universidade de Freneker, onde pretendia concluir a sua educação. O reitor é que não esteve pelos ajustes quando começou a ouvir algumas histórias muito pouco abonatórias sobre o comportamento da filha com o tal de Stuyvesant e não tardou em expulsá-lo da universidade. Malandro, aldrabão, assumiu o nome latinizado de Petrus. A latinização dos nomes revelava um alto grau académico que Peter ficou longe de ter, mas como não lhe faltava cara de pau foi como Petrus que começou a trabalhar para a Companhia das Índias Holandesas. Nos anos que se seguiram foi colocado em diversas colónias holandesas da América do Sul, como Curaçao, Aruba, Bonaire, e em postos roubados aos portugueses como a ilha Fernando de Noronha e a cidade de Pernambuco. Em 1644, durante uma querela contra os espanhóis na ilha de Saint Martin, houve um inimigo que lhe talhou a perna pela anca como se cortasse um presunto. Voltou para Amesterdão com urgência possível – os galeões não eram particularmente velozes – e colocaram-lhe uma perna de pau no lugar da que perdeu. Esse episódio marcou a personalidade de Stuyvesant com a brutalidade das coisas verdadeiramente dolorosas. Se já não era bom de assoar, pior ficou.
Em 1655 estava de volta à América. Era aí que queria e haveria de morrer. Comprou uns terrenos próximos de Nova York e fundou o Rancho Stuyvesant num lugar conhecido por Great Bouwerie. Nesses terrenos alagadiços e cheios de pinheiros resolveu erguer uma povoação, reunindo em seu redor os poucos, muito poucos, que ainda tinham paciência para lhe aturar o feitio cavalar. Não esqueceu nunca o lugar de onde veio. O lugarejo tomou o baptismo de Nieuw Haarlem. Com o decorrer dos anos ficou reduzido a Harlem. Os ingleses não sentiram grande vontade de lhe alterar o nome. Agora é apenas um bairro. Dos mais conhecidos de Nova York a antiga Nova Amesterdão.