A falta de estacionamentos em Lisboa é uma realidade que tem afetado não só os residentes, como também quem visita a cidade. Mas, apesar do problema parecer generalizado, algumas zonas da cidade acabam por ser vez mais afetadas do que outras. Recentemente, a propósito do anúncio do alargamento do estacionamento pago em Benfica, fez-se ‘história na capital’, com a realização do primeiro referendo local da cidade, que contou com uma adesão que esteve ao nível de eleições europeias. Recorde-se que um referendo local é um instrumento democrático consagrado na Constituição que permite delegar nos cidadãos o poder de decidirem sobre «questões de relevante interesse local» que sejam da competência do poder autárquico. «Concorda que a Junta de Freguesia de Benfica emita um parecer favorável à colocação de parquímetros nas Zonas de Estacionamento de Duração Limitada de Benfica [ZDEL]?». Esta foi a pergunta colocada aos 30.756 eleitores inscritos no referendo, que decorreu no dia 12 de fevereiro.
Os resultados provisórios – que já foram enviados à Comissão Nacional de Eleições – mostram que 79,84% dos 9.476 votantes estão contra o alargamento do estacionamento pago em Benfica. Segundo o presidente da Junta da freguesia, Ricardo Marques, os outros 20,16% votaram a favor, houve 0,35% de votos nulos e 0,09% em branco. Isto significa uma abstenção elevada, na ordem dos 70%. Ou seja, o resultado «não é vinculativo». Ainda assim, Ricardo Marques (PS) sempre disse que acataria o resultado, independentemente dos níveis de participação.
«Eu estou muito satisfeito. Estamos alinhados com aquilo que é normalmente o número de votantes numa eleição europeia. Nós tínhamos apontado para 8 mil a 9 mil participantes, era a nossa baliza mínima. A média dos referendos muito antigos era de 23 % de participação, houve um em Sacavém que só teve 11%… Olhando para este referendo em si, numa das maiores freguesias urbanas do país, sem os partidos se empenharam na campanha, tudo inorgânico, movimentos dos cidadãos, acho que foi uma demonstração muito interessante de vida cívica, de comunidade e participação cívica», afirma ao Nascer do SOL, Ricardo Marques, que admite ter uma opinião pessoal sobre o assunto, mas reserva-a para si até à revelação final dos resultados. «Posso dizer que sempre considerei que a EMEL, como qualquer entidade reguladora e fiscalizadora, traz soluções, mas não resolve o problema de fundo que é muito claro. Temos em média 2.6 carros por habitação em Benfica e tenho uma freguesia de construção de anos 60, 70 e 80, sem garagens. O espaço público é finito, e Benfica é a sexta zona do país com maior densidade populacional, prédios muito altos, pouco espaço público disponível, portanto, está preparado o caldeirão», explicou. «Se a EMEL em algumas zonas da freguesia funcionaria? Acho que sim, especialmente durante o dia, para as pessoas que querem ter rotação para vir almoçar a casa durante o dia, mas com este número de viaturas, a partir das 19h, quando a EMEL deixa de fiscalizar, não há lugares disponíveis em espaço público», lamentou. Para o presidente da Junta, Santo Domingues da Cruz Vermelha, por exemplo, é um «martírio». Os carros estão todos em cima do passeio. «De manhã são multados quando a EMEL entre as 8 horas. As pessoas sentem-se defraudadas, na expectativa da resolução do problema», lembrou.
Há uma coisa que acha crucial esclarecer, «porque criou dúvidas depois de uma publicação da Lusa»: «O referendo só é vinculativo para a entidade que o convoca acima de 50% de participação mais um eleitor. O vinculativo deste referendo vinculava-me a mim, à junta de Freguesia, neste caso ao presidente que tem de emitir um parecer. O parecer que eu emito para a Câmara Municipal de Lisboa e para a EMEL é meu. Não está nada preso. Eu sempre disse que quer o referendo fosse vinculativo de lei, quer não, eu estaria sempre obrigado porque ia respeitar a maioria dos eleitores que participassem no ato eleitoral», esclareceu. «Isto é algo que não foi completamente clarificado. Por isso, o parecer que eu emitirei é obviamente o respeito escrupuloso pela vontade dos eleitores», garantiu.
O resultado do referendo foi enviado para a CNE para ser validado em 48 horas e, agora, Ricardo Marques irá marcar uma reunião com o presidente da Câmara de Lisboa, Carlos Moedas, a Empresa Municipal de Estacionamento e Mobilidade de Lisboa (EMEL), e a presidente da Assembleia Municipal de Lisboa para o avaliar.
Aos olhos dos moradores
João Paulo Santos, presidente da Associação de Moradores do Bairro do Calhariz de Benfica, vive na zona «desde sempre». «Que eu saiba, a freguesia ainda não deixou de ser uma freguesia dormitório, com muitas pessoas a saírem para irem trabalhar para o centro de Lisboa e a regressarem ao final do dia. Portanto, há aqui características específicas, em que tipos de projetos como estes da EMEL, devem também ser pensados de forma muito específica. Não se pode ter a mesma métrica para todas as freguesias da cidade, quando cada uma delas tem as suas características, desenvolvimento, conjunto de residentes próprio», defende.
Neste caso, segundo o morador, verifica-se que a EMEL não veio trazer uma solução, mas sim um «problema». «A mecânica de funcionamento que eu tenho tido, leva-me a pensar que esta não é uma empresa de mobilidade, mas sim uma empresa de cobrança de estacionamento. É esta a forma e métrica que utiliza para gerir o estacionamento da cidade de Lisboa. Não implanta estacionamento, não promove a sua construção», frisou.
João Paulo Santos acredita que a EMEL dá a ideia que o dístico é um lugar, mas isso «não corresponde à verdade». «Emite mais dísticos do que lugares disponíveis na cidade de Lisboa. O número de lugares continua o mesmo, mas os utilizadores basicamente têm de começar a pagar», alertou, lembrando que a própria distribuição da EMEL fez com que a freguesia ficasse dividida em 9 zonas. Uma delas tem apenas duas ruas. «E porquê? Porque são as duas ruas próximas do mercado, que em princípio são aquelas que podem trazer mais potencialidade de cobrança no estacionamento. Mas a verdade é que com a emissão do número de dísticos, tendo em conta o número de lugares disponíveis, com a repartição das freguesias num conjunto de zonas, faz com que eu aqui, como morador, mesmo tendo um dístico, quando a EMEL for implementada para toda a freguesia, apenas tenho acesso a cerca de 15 a 20 % da freguesia. Os restantes 80 % eu terei de pagar como qualquer outra pessoa… Mais uma vez, significa que não é esta a política certa», defendeu.