A amiga (da) química

Garmus disse ter escolhido para o seu livro uma mulher do mundo da ciência por se tratar de uma personagem muito rigorosa, que tudo o que faz é com exatidão…

Por João Paulo André, Químico 
 

Oromance Lições de Química (2022), da norte-americana Bonnie Garmus, rapidamente se tornou um fenómeno de popularidade à escala mundial (edição portuguesa da ASA). Vem a caminho uma série televisiva que terá, à partida, todos os ingredientes para ser outro grande sucesso. A ação, nos EUA dos anos de 1950 e 60, centra-se em Elizabeth Zott, uma bela e inteligente química que trabalha para um instituto de investigação onde reina a misoginia. O tom humorístico (agridoce) usado não diminui a eficácia da narrativa, denunciadora das dificuldades e restrições por que ainda passavam as mulheres ocidentais nos anos 60. Trata-se, de resto, de um tema de enorme atualidade: são muitos os países onde persiste a violação dos direitos e das liberdades da mulher, com o Afeganistão, a Síria e o Sudão do Sul à cabeça (dados da Concern Worldwide).

É certo que se trata de um livro com imprecisões (tais como as nomeações para o Nobel, que, na verdade, só são conhecidas 50 anos depois) e frases cheias de termos científicos que, juntos, não dizem nada; já para não falar da pouca verosimilhança de alguns diálogos, como, por exemplo, quando a protagonista afirma «A minha pesquisa sobre ADN centrava-se nos ácidos polifosfóricos como agentes de condensação» ou «A sua ideia está completamente equivocada […] Não leva em consideração a natureza fundamental da síntese proteica». O que faria sentido dizer é que investigava agentes de condensação do ácido fosfórico conducentes à formação de polifosfatos (algo que, no entanto, não se relacionaria com o ADN). Já a segunda frase, é tão metafísica que mais parece pronunciada por um filósofo, e não por uma química. Conceda-se, no entanto, clemência à autora, no mínimo por razões de liberdade de expressão artística. A própria confessou à revista Chemical & Engineering News (vol. 100, n.º 19) que, por não ter formação em Química, recorreu ao The Golden Book of Chemistry Experiments, um manual atualmente banido (por ensinar as crianças a fazerem experiências perigosas em casa!) mas que foi muito popular na década de 60. Já para a tradutora do livro para português, que prefere desnaturalizar as proteínas em vez de as desnaturar (‘denaturate’), que traduz ‘a positive ion reaction’ como ‘uma reação de iões positiva’, e para quem ‘beaker’ (copo ou gobelé) é uma proveta e ‘chemical bond’ (ligação química) um elo químico, não há perdão possível.

Não obstante as limitações científicas da autora, é interessante notar a sua opção pelo tema do ADN, molécula cuja estrutura era na época uma novidade. Foi no início dos anos 50 que a química britânica Rosalind Franklin a investigou, recorrendo à cristalografia de raios X. Os resultados obtidos, porém, foram parar às mãos de três homens, Wilkins, Watson e Crick, que em 1962 receberiam o Nobel da Medicina. Franklin tinha entretanto morrido de cancro.

Garmus disse ter escolhido para o seu livro uma mulher do mundo da ciência por se tratar de uma personagem muito rigorosa, que tudo o que faz é com exatidão, até o programa de culinária que tem na TV. Acrescentou ainda que a Química lhe pareceu ideal para transmitir essa ideia de rigor. Tal escolha, porém, surpreendeu muita gente, porquanto se trata de uma área científica desde há muito olhada de soslaio. Com efeito, o mundo ocidental desenvolveu uma espécie de quimiofobia, sobretudo a partir da publicação de Primavera Silenciosa (1962) de Rachel Carson, livro que alertava para os danos ambientais e humanos decorrentes do uso indiscriminado de pesticidas como o DDT. Tal aversão tem sido continuamente alimentada, até por séries de TV como Breaking Bad, cujo protagonista é um professor de Química que se dedica à produção de metanfetamina (uma droga).

 

Garmus, que declarou nunca ter partilhado de tal antipatia por esta ciência, será daquelas pessoas que reconhecem o seu valor e até a sua beleza. A comunidade científica mundial poderá, por conseguinte, agradecer-lhe, pois enquanto narrativa ficcional, mas realista, da vida de uma mulher do primeiro mundo dos anos 60, o seu livro oferece um bónus: contribuir para melhorar a perceção pública da ciência dos ácidos, das bases e dos sais, e das «drogas usadas em casos que tais», como disse o poeta.