Todos sabemos que o medo é uma reação natural do nosso corpo que faz parte do instinto de sobrevivência, por mais que, muitas vezes, não o consigamos explicar.
O medo pode, por isso, ser considerado um sentimento de receio em relação a uma pessoa, a uma situação ou mesmo a um objeto. Ou seja, é inerente à própria pessoa e, o que atemoriza um indivíduo, pode muito bem ser indiferente para outro. Porém, quando a coisa sobe de tom, o nome também. Qual a diferença entre medo e fobia? Afinal o que é uma fobia, de onde surge e como tratá-la? Se há uns que têm fobia de espaços fechados, cães, aranhas e alturas, há, por outro lado, quem não consiga ver vómito, conviver com anões, observar pessoas a comer gelatina, lidar com a existência de cabelos, ou tocar no próprio umbigo.
O pesadelo de Eliana Vidinhas começou aos 25 anos, depois de chegar a Portugal. Até então, nunca tinha visto “aquela coisa gelatinosa”. “Eu tenho fobia a gelatina e percebi que a tinha no momento em que a vi pela primeira vez. Tinha chegado de Angola. Lá não havia gelatina. Quando cheguei a Portugal, sentada no meu local de trabalho – um restaurante -, vi uma colega minha a comer. Logo quando olhei, comecei a arrepiar-me, porque aquilo tremia”, começa por contar ao i. “Quando ela levou uma colher à boca, a gelatina caiu na mesa e acabei por levar com um bocadinho no braço. Senti a textura gelatinosa, aquela gosma, e caí no chão. Desmaiei, perdi os sentidos. Aquilo causou-me um grande pavor”, explica agora com 48 anos.
Só de falar sobre isso, as suas mãos começam a suar. “Vê… A respiração falha… Então quando me deparo com a gelatina, entro em histerismo, fico ofegante, tremo. Entro em pânico”, frisa Eliana, acrescentando que o pior é mesmo perder os sentidos. “Nessa primeira vez, caí mal. Depois senti-me muito envergonhada”, lamentou.
Medo vs Fobia Reação natural de quem sofre deste “medo excessivo”: “Uma fobia é um medo excessivo, um medo irracional e desproporcional face à situação, e pode surgir em resposta a um objeto, circunstância ou situação específica”, afirma ao i a médica psiquiatra Elsa Rocha Fernandes. Segundo o DSM-5 (Manual de Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais 5.ª edição) pode incluir o medo excessivo em relação a alturas, a voar, a ver sangue ou estar num espaço fechado, por exemplo. “Difere do medo, que é uma reação racional em relação a um objeto ou circunstância potencialmente perigoso, e que pode levar um indivíduo a responder com uma resposta de luta ou fuga (por exemplo perante um animal perigoso)”, esclarece a especialista.
Além disso, acrescenta Jessica Condeixa, psicóloga clínica e terapeuta EMDR, a fobia enquadra-se nas perturbações de ansiedade. “Surge perante determinadas situações, locais, objetos ou atividades que não representem necessariamente um perigo real iminente”, afirma, contando que perante qualquer que seja o motivo do medo, a pessoa fóbica, ao sentir-se insegura, pode desenvolver um sentimento de ansiedade exacerbada e/ou uma crise de pânico. “As fobias provocam sintomas físicos intensos como palpitações, sensação de falta de ar, tremores, tonturas, entre outros”, alerta a psicóloga. “O medo é uma forma de proteção perante um perigo real e que mesmo que possa, por vezes, aparecer em situações quotidianas, tende a passar e a não afetar significativamente o funcionamento da pessoa”.
Segundo a literatura, afirma Elsa Rocha Fernandes, as fobias têm, habitualmente, início na infância e apresentam um pico de apresentação por volta dos 7 anos de idade. De acordo com a psiquiatra, “a taxa de prevalência de fobias específicas (a animal, a ambiente natural como sejam alturas, água, tempestades etc., a sangue-injeção-ferimento, a uma situação, como sejam o avião, elevadores etc. ou outros), ao longo da vida, é superior em mulheres do que em homens, sendo o sexo feminino referido como um fator de risco, assim como, possivelmente, fatores genéticos que são apresentados na história familiar de existência de fobia(s)”.
O desenvolvimento de uma fobia específica pode ainda estar associado a um “incidente”, ou “trauma particular”, e resultar da “associação de um objeto ou situação com emoções de medo e pânico”, isto é, a uma experiência emocional que pode decorrer de uma experiência externa (ex., acidente de trânsito), ou de uma experiência interna (ex., ataque de pânico face a um acidente). “Pode ainda resultar de comportamentos de modelamento, uma resposta aprendida por observação da reação de outros (por ex., progenitor), e a transferência de informação na qual a pessoa é ensinada sobre os perigos de objetos ou situações específicas. Os fatores genéticos podem desempenhar um papel pois existe evidência científica de que as fobias específicas tendem a surgir em famílias com casos identificados”, explicou a psiquiatra.
No caso de Eliana, surgiu de um evento traumático. Por se sentir mal e ficar triste, quis perceber o porquê de sentir isso. De onde é que isto vinha? “É um doce, bolas… Como é que me faz tanta aflição?”, interrogou com insatisfação. Foi então que falou com a sua médica de família que a encaminhou até um psicólogo que a fez perceber, depois de falar sobre o seu passado, onde nasceu o medo irracional da gelatina. “Entre os 9 e 10 anos, eu ainda fazia xixi na cama, e a minha avó, em Angola, para nos meter medo, para nos envergonhar, mandava apanhar sapos. Os miúdos traziam-nos, agarrava uma corda na cintura dos bichos e depois na minha cintura. Eu ficava com o sapo amarrado à cintura, no meu corpo”, lembra com a voz trémula.
Além disso, lidar com a reação das outras pessoas também é sempre “complicado”. “As pessoas gozam. Não sei mesmo se não estaremos a falar de bullying. Sofri muito por ser gozada, pelas pessoas não compreenderam. Porque sempre que me deparo com ela, esteja ela já confecionada, esteja ela em pacote, no supermercado, em casa, fico sempre da mesma forma”, admitiu.
Para superar essas situações, Eliana evita estar perante a sobremesa. “Evito vê-la. Os meus colegas de trabalho já sabiam. No supermercado, evitava passar pela prateleira das gelatinas”, contou. Mas apesar de ter feito terapia e de tentar gerir as suas reações dizendo a si mesma que “não passa de um doce”, Eliana não consegue superar este medo exacerbado. “Acho mesmo que é um medo com o qual terei de viver para toda a vida”, lamentou.
Os vários tipos de fobias No relatório do estudo epidemiológico nacional de saúde mental, realizado pela Nova Medical School, Faculdade de Ciências de Lisboa, encontramos referência a taxas de fobias específicas de 8,3% e de fobia social de 3,1%. O relatório refere ainda que “as perturbações fóbicas, no seu conjunto, constituem uma parte importante das perturbações de ansiedade, enquanto a depressão major representa a larga maioria das perturbações do humor”.
Em consultório, segundo Jessica Condeixa, as fobias mais frequentes tendem a ser a agorafobia, a fobia social e a claustrofobia. Atualmente é também notório que alguns destes quadros se desenvolveram durante ou no período pós pandemia, “uma vez que houve isolamento forçado e que foram evitadas durante algum tempo situações que antes eram habituais, as quais podem ter sido difíceis para algumas pessoas de retomar”.
De acordo com a psicóloga, podemos classificar as fobias em vários tipos básicos: fobia específica, na qual o medo irracional e exacerbado é despoletado perante uma situação ou evento específicos, sendo que este estímulo fóbico pode relacionar-se com animais (aranhas), o ambiente natural (tempestades) ou a situação (andar de avião), entre outros (medo de palhaços); fobia social, na qual a pessoa evita situações de exposição social e onde possa ser julgado por outras pessoas (falar em público) e agorafobia, na qual a pessoa tem medo que algo inesperado e negativo aconteça, do qual não consiga escapar ou pedir ajuda. “Traduz-se no medo e evitamento de espaços com multidões, transportes públicos, locais fechados e até do ato de sair de casa sozinho, fundamento pelo medo de que algo mau aconteça e que não tenham controlo sobre a situação, não recebam ajuda ou não consigam escapar. No fundo, define-se pelo medo de ter medo”, esclarece.
Interrogada sobre as fobias mais estranhas, como a de umbigos, cabelos, vegetais, casas de banho, a especialista explica que as fobias podem ter uma origem tão diversificada quanto as experiências de cada indivíduo, “o que faz com que possam parecer ‘estranhas’ ou ‘bizarras’ vistas de fora”: “Se por alguma razão houve um trauma, um gatilho ou uma ansiedade ou medo muito intensos perante uma situação, por mais normativa que esta possa ser, há a possibilidade de se desenvolver uma fobia. Por isso, podemos encontrar pessoas com fobia a pombos, galinhas, determinados alimentos, texturas, à condução, a dentistas… Que apesar de existirem no quotidiano de todos, por alguma razão criam desequilíbrio emocional naquele indivíduo”, acrescenta.
Carla Brito, atualmente com 24 anos, descobriu que tem Emetofobia (fobia a vómito), quando tinha por volta dos 11/12 anos. “É impensável para mim ajudar alguém, já tive situações em que a minha mãe se sentiu mal e me pediu ajuda, mas eu tenho que sair de casa porque nem consigo ouvir o som”, lamenta a jovem, revelando que quando é o seu caso, tem de ir ao hospital levar relaxante muscular, pois fica em choque e simplesmente não se consegue mexer.
A situação mais complicada pela qual passou foi há cinco anos, depois de jantar umas salsichas frescas estragadas. “Vomitei e fiquei em posição fetal, não me conseguia mexer, nem falar. Fui levada para o centro de saúde para levar relaxante muscular intravenoso”, explica.
Carla Brito nunca foi uma pessoa de vomitar muito, mas sempre lhe fez muita confusão falar no assunto. “Acredito que o que desencadeou o medo, este pânico, foi o momento em que a minha avó esteve hospitalizada e eu a fui ver. Ela tinha acabado de ser operada e estava a vomitar muito. Fiquei em choque”, lembrou.
Para não se sentir tão só, a jovem é membro num grupo de Facebook, onde descobriu que “há centenas de pessoas a sofrerem do mesmo”. “Nesse grupo (maioritariamente brasileiro) dão dicas de medicamentos que ajudam na altura da má disposição e até os que têm efeitos secundários não desejados”, conta.
Segundo a jovem, a fobia afeta toda a sua vida. “Eu não saio à noite porque há sempre o risco de ver alguém vomitar não como tudo o que me apetece com medo que me faça mal; respeito imenso os tempos da digestão; não fico perto de alguém que possa ter uma virose (que saiba); não consigo sequer ver uma cena de um filme em que apareça vómito, ainda que seja rápido; não consigo andar no banco de trás do carro, porque fico mal disposta”, exemplificou.
Felizmente, só vomita de cinco em cinco anos, quase sempre devido a uma virose, ou seja, algo que não consegue controlar.
Os tratamentos possíveis Perante uma fobia, garante Jessica Condeixa, a procura de ajuda psicológica é “essencial”, sendo que parte da intervenção é trabalhar com a pessoa recursos de autorregulação como por exemplo: Técnicas de Relaxamento (Respiração Diafragmática, Relaxamento Muscular Progressivo), Exercícios de Mindfulness e Técnicas de Distração como centrar-se num objeto ou no ambiente envolvente com atenção plena e distrair-se em atividades que ocupem o corpo e a mente.
“O tratamento das fobias deve ser realizado através da Psicoterapia. Existem várias abordagens terapêuticas possíveis de utilizar no tratamento, como a Hipnose ou a Psicoterapia Cognitivo-Comportamental que é considerada uma das intervenções mais bem-sucedidas no tratamento de fobias, no qual a pessoa é exposta gradualmente aos desencadeadores de ansiedade. Existem ainda intervenções específicas, como o EMDR, ajustadas ao tratamento de fobias. Devemos ainda considerar a necessidade de incluir acompanhamento psiquiátrico de forma a conciliar a terapia com o uso de medicação”, alertou a psicóloga.
Jessica Condeixa é também especialista em EMDR (Eye Moviment Desensitization and Reprocessing- Dessensibilização e Reprocessamento por Movimento Ocular), um modelo de intervenção em Psicologia Clínica e Psicoterapia que “recria o que acontece naturalmente durante o sono na fase REM (Rapid Eye Movement)”. “Pode ser encarado como uma intervenção de base fisiológica, que ajuda a pessoa a encarar e viver os traumas de uma forma nova e sem os efeitos que causam perturbação”, elucidou. Segundo Jessica, esta é uma abordagem terapêutica reconhecida pela Organização Mundial de Saúde, pela Associação Americana de Psicologia e pela Ordem dos Psicólogos Portugueses, utilizada sobretudo no tratamento de Perturbação de Stress Pós-Traumático, Perturbações Depressivas, Perturbações de Ansiedade e Perturbações Psicossomáticas, entre outras.
“O EMDR tem como objetivo reprocessar memórias de eventos perturbadores ou traumáticos, que estão na base de sofrimento psicológico. Ajuda a diminuir o sofrimento, contribui para o processamento adaptativo de emoções e pensamentos e promove o autoconhecimento e desenvolvimento pessoal”, acrescentou.
As limitações Maria Resende tem apenas 14 anos, tempo suficiente para ter desenvolvido um medo exacerbado por pássaros, em particular, pombas. “A minha mãe diz que é desde bebé!”, conta ao i, explicando que além de um grande pânico, sofre também de nojo e repulsa por estes animais. “Lembro-me de quando tinha 12 anos, ter ido com os meus pais visitar o Porto! Lá há pombas em todas as esquinas. O que era para serem uns dias felizes em família, tornou-se num pesadelo para mim. Andava sempre agarrada ao meu pai!”, lembrou. Contudo, por duas ou três vezes, perdeu o controlo e os seus pais não a conseguiram segurar. “Quase fui atropelada enquanto tentava fugir!”, lamentou. Quando foi à Madeira com os seus tios, também foi “horrível”. “Sabia que os ia encontrar, por isso não queria ir para determinados lugares. Chegava a ficar o dia todo dentro da piscina por saber que lá não os iria encontrar”, admitiu.
A sua mãe chegou a levá-la à psicóloga. Porém, a adolescente não sentiu quaisquer melhorias. “A seguir fiz hipnose (hipnoterapia) mas também não senti qualquer diferença e acabei por desistir!”, admite.
Quando se vê numa situação de aflição, tanto a família como amigos tentam ajudar, afastando as pombas. “Também evito várias situações, como por exemplo comer em esplanadas ou estar muito tempo no exterior em cidades grandes!”, revelou.
De acordo com Susana, a sua mãe, é desesperante ver a filha a ficar pálida, nervosa, ansiosa e a começar a chorar de desespero! “Eu tento ajudar e controlar a situação, mas a minha vontade é chorar também. Além disso, quero abraçá-la e não consigo. É o pior que lhe podem fazer nessas alturas, pois não suporta estar presa e só quer fugir”, conta, garantindo que tem recorrido a tudo quanto pode, mas “estas consultas não são baratas, e claro que não existem respostas do Estado”. “Não sei dizer se eu pudesse continuar com estas consultas, durante anos e duas vezes por semana, se o resultado seria positivo. Assusta-me pensar que daqui a três anos, ela terá que ir sozinha para algum lado estudar! Ela própria já me disse que não vai, exatamente por este problema”, admite a mãe.