Chovendo estrelas em Santiago

Num torneio internacional o Santos venceu a Checoslováquia por 6-4. Há quem diga que nunca houve nada igual!

Com aquela ligeira e encantadora capacidade de atingir o exagero quase sem darmos por ela, o brasileiros nunca têm dúvidas em relação aos factos e, se a imaginação se sobrepõe aos factos, então que se lixem os factos e ponto final. Não tiveram dúvidas quando lhe chamaram O Melhor Jogo de Toda a História do Futebol e ainda menos dúvidas quando o apelidaram de Jogo Perfeito. E se julgam que estou a falar, por exemplo, da final do Campeonato do Mundo de 1970, bem podem esquecer. Falo de algo que, à vista de todos, pode parecer muito mais comezinho, um Santos-Tchecoslováquia (assim mesmo com T, à brasileira) a contar para um torneio internacional que se disputou em Santiago do Chile em Janeiro de 1965.

Convenhamos que não foram apenas os brasileiros a contribuir para a lenda dessa partida extraordinária levada a cabo pelo Santos de Pelé. O redator-chefe do Últimas Notícias, um periódico chileno, um fulano chamado Julio Martinez, não teve dúvidas e berrou nas páginas do seu jornal: «¡Que cierren el estadio!… ¡Después de esto hay que descansar un mes!…. ¡Voy a las boleterías a pagar de nuevo!» Acabara de assistir a um daqueles desafios que surgem uma vez na vida perante o olhar atento de qualquer apaixonado: os brasileiros tinham acabado de bater os checos, vice-campeões do mundo, por 6-4. Uma explosão de futebol ofensivo de parte a parte, um nunca mais acabar de oportunidades de golo, e nada menos de dez pontapés certeiros para serem devidamente festejados pelos felizardos que estiveram nessa noite no Estadio Nacional de Santiago. «Fue todo tan hermoso que el árbitro, Rafael Hormazábal, jugó cinco minutos de más. Y con toda razón. ¿Cuándo se va a encontrar en otra como esta?», concluía Julio.

Por mais que mergulhemos nos antigos e amarelados canhenhos em busca de pormenores eles são, convenhamos, dispensáveis. Por cima de tudo o que se passou na realidade naquela noite chilena o que importa é a poesia. E a lenda. Reparem neste episódio fascinante: todos os golos, todos os dez golos do diabo, surgiram como rajadas de metralhadora – 28m, Coutinho (1-0); 32m, Masny (1-1); 34m, Mraz (1-2); 45m, Pelé (2-2); 50m, Dorval 3-2); 60m, Masny 3-3); 61m, Coutinho (4-3); 77m, Vasnak (4-4); 85 e 90m, Pelé (6-4). Ah! Pois! Foi mesmo um jogo luciferino. E havia aquele ser etéreo que se chamava Edson Arantes do Nascimento, por extenso Pelé que ainda hoje ninguém foi capaz de descrever com recurso à prosa ou à poesia.

Martinez outra vez: «¿Qué pasaba si Pelé jugaba para los checos? A lo mejor el resultado se invierte. Por eso me quedo con el espectáculo. Por eso creo que en la historia del estadio Nacional – veinticinco años de fulgores y galas – no se ha visto nada superior!» No Brasil, soltavam-se louvores idênticos: «80 mil espectadores se puseram de pé, acenderam fogueiras com jornais e revistas e tributaram a ambos os quadros uma estrondosa ovação que demorou longos minutos, enquanto todos os rapazes brasileiros e checos se emocionaram até as lágrimas. Todos os jornais e revistas dizem que foi uma ‘partida inesquecível’, porque fazia muito tempo que não se presenciava um prélio tão extraordinário e tão belo. Sobre isso, não há opiniões contrárias e brasileiros e checos se transformaram em ‘regalo’ da torcida que acompanha este torneio Hexagonal, destacando-se o carinho arrebatador da mesma para com o ‘Rei’ Pelé e para o astro checo Masopust».

Quantos serão os que se recordam desse jogo maravilhoso? Quantos serão até os que alguma vez ouviram falar dele? Esta é a crónica das crónicas porque é feita à custa das crónicas de quem assistiu ao vivo a um dos momentos mais fervilhantes da história do futebol. Eu dou a palavra às testemunhas, como Antonino Vera, da revista Estadio: «El mejor partido que he visto, incluido tres mundiales. El choque de dos escuelas diferentes y la cabal demostración de cómo se puede llegar a lo mismo por distintos caminos. Los checos, ‘roperos de tres cuartos’, según muchos, hicieron mayor gasto; los brasileros, sutiles, Llegaron con mayor naturalidad. Los dos alcanzaron el propósito: jugar al fútbol en la forma más perfecta posible. Por primera vez en Chile, Pelé justifico ser el Rey y nadie puede dudar que resultara imposible superar una actuación tan acabada. Es el más grande jugador que he visto y ni Pedernera, ni Moreno, ni Di Stefano asoman como hombres completos si trazamos un paralelo con este fabuloso negro». E Pelé, por seu lado, tranquilo como sempre: «Não sei dizer se foi o melhor jogo de sempre. No campo só penso na bola e no golo». Ou seja, como cantou um dia Chico Buarque, limitava-se a avançar na vaga geometria, no sentimento diagonal, rasgando a linha. Nessa noite em Santiago não chovia. Ou melhor choveram estrelas sobre um relvado onde se desafiaram os deuses da parábola do homem comum. Com a bola pelo meio…

afonso.melo@newsplex.pt