“Coração de Manteiga”

por Nélson Mateus e Alice Vieira

Querida avó,                                                                                

Na última carta falavas do Dia dos Namorados. Percebi, perfeitamente, que era uma provocação! Pois, tal como tu, não celebro esta data.

Nada contra! Mas se temos o Santo António como Santo Casamenteiro não vejo necessidade alguma de celebrar o São Valentim. Aliás, acho tudo uma piroseira!

Celebrar o amor de forma coletiva com milhares de pessoas em restaurantes, hotéis e afins não é para mim! Gosto sim de celebrar o dia em que conheci a pessoa amada.

Isto não quer dizer que não seja uma pessoa romântica, pois sou. Até te posso dizer-te que sou um coração de manteiga.

Quando era jovem gostava imenso de ouvir o Tony de Matos a cantar a canção “Sou Romântico”:

«Eu sou romântico/ Em toda a minha vida fui romântico/ Em cada despedida fui romântico/ E ainda sou».

Para veres que o amor sempre habitou no meu coração, outras das canções que adorava ouvir, também do Tony de Matos, era a canção “Cartas de Amor”:

«Cartas de amor/ Quem as não tem/ Cartas de amor/ Pedaços de dor/ Sentidas de alguém/ Cartas de amor/ andorinhas/ Que num vai e vem, levam bem/ Saudades minhas/ Cartas de amor/ quem as não tem».

No que diz respeito a filmes românticos sei que gostas muito do “Casablanca” e de “E Tudo o Vento Levou”

Eu gosto dos filmes “As Pontes de Madison County”; “Titanic”; “Molin Rouge”…

Podia partilhar contigo livros românticos que li… Dizer-te que já perdi a conta à quantidade de vezes que já fui a Paris e Florença, duas cidades muito românticas. Que fui muito feliz em Verona. E como gosto de ser diferente dos outros, para mim, Veneza fica longe de ser uma cidade romântica. E nunca mandei moedas, nem beijei ninguém junto à Fontana di Trevi, em Roma.

Diz lá que não sou um “Coração de Manteiga”?

Bjs

 

Querido neto,

Isso é que é romantismo! Para celebrar o Dia dos Namorados, como sabes, fui ao médico. A sala de espera de um consultório é aquele estranho lugar onde geralmente ficamos em dia com as desgraças, amores e desamores de gente certamente muito importante porque as suas fotografias enchem páginas e páginas das revistas, mas de quem nunca ouvimos falar.

Às vezes, no final, reparo que aquelas revistas já têm mais de um ou dois anos, mas isso que importa, o tom de irrealidade é o mesmo, e o que é preciso é que a gente fique mais calma para enfrentar o que nos espera quando a empregada abrir a porta e chamar pelo nosso nome.

O rapaz tinha sido chamado antes de mim e confesso que nem tinha reparado nele. Mas ali estava ele de novo, agora com um ar muito preocupado, a perguntar se alguém tinha visto a carteira, só podia estar ali, ele lembrava-se até de a ter aberto, por isso tinha de estar ali.

Mas ninguém tinha visto a carteira.

Ao balcão, um homem apressava-se a pagar a conta, abanou a cabeça, também não a tinha visto, e saiu.

Na sala, levantámo-nos todos, revirámos almofadas dos sofás, olhámos por todos os cantos, e nem rasto.

O rapaz garantia que só podia estar ali, o que nos tornava a todos suspeitos.

«Devo tê-la deixado cair aqui», repetia ele, aflito, a carteira tinha, segundo afirmava, os cartões todos e muito dinheiro, «e agora?».

É então que a porta da rua se abre e regressa o outro homem, o que acabara de pagar a conta ao balcão.

Tem uma carteira na mão e, com maus modos, estende-lha:

– Tome lá.

O rapaz olha e nem pergunta nada, pegou na carteira e correu escada abaixo.

O outro encolheu outra vez os ombros, olhou para nós todos como se tivesse feito uma coisa absolutamente normal, e murmurou:

O meu mal é ter um coração de manteiga!

Abriu a porta e saiu.

E a empregada até trocou o nome do doente seguinte.

Bjs