Gaziantep. Tal e qual a conheci…

Recordação já antiga de duas cidades irmãs entretanto destruídas: na semana passada, um terramoto brutal desfez o lugar da velha Antioquia; a guerra foi destruindo a vizinha Aleppo a pouco e pouco. Sobram as memórias.

Morrem as cidades como morrem os homens. Algumas destruídas pela violência da natureza que é, por vezes, mais implacável do que a Humanidade com todos os seus defeitos. Gaziantep desfez-se como um castelo de areia graças a um terramoto que a fez estremecer até ao mais fundo dos seus alicerces mesmo sabendo nós que muitas das suas traves mestras eram fáceis de reduzir a pó pela falta de qualidade dos materiais com que foram construídos os seus edifícios, um mal universal a que ninguém parece verdadeiramente querer pôr um fim. É fácil agora acumular lamentos como se acumularam destroços sobre as vítimas da tragédia. De um dia para o outro, não faltou quem quisesse saber o que aconteceria em Lisboa se um sismo destas proporções abalasse Portugal quando, na verdade, a pergunta que deveria ser colocada era a que podemos fazer quando tal acontecer já que algo do género parece ser inevitável mais década menos década? Não tendo dúvidas que muitas das massas de betão que têm destruído a face da capital foram erguidas com materiais de baixa qualidade que se sujeitam a serem arrasados facilmente. Pois… pois… ai se Lisboa soubesse…

Já lá vão uns bons vinte cinco anos desde que estive em Gaziantep, na Anatólia, pouco tempo antes de ter ido à sua irmã do sul, Aleppo, hoje em dia já na Síria, outra das cidades milenares da região, num tempo de tanto calor que preferíamos dormir nos terraços do hotel barato onde ficámos antes de seguir para Palmira que, entretanto a imbecilidade da guerra também resolveu varrer dos mapas.

Aintap vem da expressão hitita que significa Terra do Rei. Assim se chamou até receber oficialmente a designação de Gaziantep por parte do governo turco em 1928. Gazi é uma expressão que vem do tempo de Maomé e serve para distinguir algo ou alguém que se bateu dignamente em combate. E com o prefixo se honrou uma cidade que, em redor do seu castelo, desfeito pela violência do terramoto, se bateu bravamente durante a guerra Franco-Turca, um conflito aberto entre 1918 e 1921, ainda ensombrado pelo que sucedera durante a I Grande Guerra, e que teve um peso fundamental na independência da Turquia saturada da presença do Exército Colonial Francês.

A História, na sua habitual azáfama, resolveu juntar-se nas margens do rio Sajur, que atravessa Gaziantep, e serve de afluente ao Eufrates. O Sajur pode ser pequeno em extensão (apenas 108 km) mas viveu momentos contínuos de evolução. Divide-se entre a Turquia (60 km) e a Síria (48km) e ganha o nome de Alleben Deresi naquele pedaço em que atravessa a cidade velha agora entregue aos gritos de aflição de gente que perdeu famílias inteiras e aos ruídos das máquinas que continuam a fazer um esforço mecânico para tirar sobreviventes dos escombros e, à medida que os dias passam, limitam-se a descobrir cadáveres e mais cadáveres. Num dos últimos censos, Gaziantep somava cerca de dois milhões e cem mil habitantes, o que dá bem ideia da grandeza da cidade, a sexta mais populosa da Turquia.

Os dois principais distritos urbanos Sahinbey e Sehitkamil albergam mais de um milhão e setecentas mil pessoas. Sehitkamil dirá mais às pessoas que não conhecem o lugar. Era lá que, orgulhoso, o castelo dominava o redor; é lá que, sofridamente, se desfazem os seus restos…

Castelos…
O castelo de Gaziantep é o ex-líbris da cidade que chora os seus quase 18 mil mortos. Vem do tempo dos hititas, esse povo que habitou a Anatólia, que estabeleceu um império primeiro em Kussara (1750 a.C.) e depois em Kanesh (1650 a.C.), mais ao centro da atual Turquia, mas que caminhou para Leste à procura dos terrenos mais férteis situados entre as margens do Tigre e do Eufrates, local que muitos historiadores apontam como o berço das civilizações. Em conflito constante com o Novo Império Egípcio e com o Império Assírio, os hititas reforçaram as suas fronteiras na zona da Anatólia e acabaram por colapsar como entidade organizada na Idade do Bronze desfazendo o império por dissipação.

Antes disso, porém, Gaziantep já era um local habitado e, sobretudo, de inequívoca importância militar, tendo os hititas aproveitado a colina que fica no centro da cidade para erguerem um posto de observação que lhes permitia vigiar os movimentos inimigos num espaço de longos quilómetros em redor e em todas as direções. Mas só com a chegada dos romanos entre o século II e III da nossa era é que o posto de observação começou a ser programado como fortificação militar sendo foco de melhoramentos ao longo dos tempos que advieram até se transformar numa fortaleza fundamental para quem queria dominar a região, sofrendo já sob o reino do imperador bizantino Justiniano I uma compartimentalização capaz de o tornarem numa edificação única preparada para aguentar todo o tipo de violência. Menos, pelos vistos, a de um terramoto como o que agora arrasou com Gaziantep. 

Os bairros das janelas
Lembro-me das janelas e das varandas envidraçadas, lembro-me da tepidez do fim da tarde, lembro-me das sombras que se entreviam nas vielas esconsas, lembro do cantar dos muezzins, lembro do bazar movimentado e das bancadas de legumes e de frutas secas. Não imagino a vida numa cidade moribunda. Não imagino o sofrimento que se estende por cada rua que percorri pacificamente falando com as pessoas, tirando fotografias com a minha velha Nikon F3, material de guerra que atravessou comigo dezenas e dezenas de países do mundo. As notícias que chegam são terríveis, as imagens dignas da queda da Babilónia. O castelo de Gazieantep ficou sem dois dos seus torreões, abatidos por duas sacudidelas consecutivas das placas tectónicas da Terra. O homem é um bicho demasiado frágil para dominar os elementos. É simplesmente atirado de um lado para o outro e deixa-se afogar em pedaços de metal e de cimentos que se desprendem uns dos outros com a facilidade com que uma folha de papel vegetal se deixa levar pela ventania.

Década após década, o orgulho maior de Gaziantep foi alvo de renovações. A primeira e mais vigorosa de todas elas no tempo em que pertenceu ao sultanato egípcio de Saladino. Não houve quem não se tenha sentido um rei naquele lugar. Até nós, meros passantes, que o quisemos conservar na memória e que nos limitamos, hoje, à simples memória. Durante o Império Otomano a sua importância estratégica foi enorme. Nas suas cercanias, logo ali ao lado, construíram a mesquita de Sirvani. Nomes e nomes podem ter ido e voltado. Mas a firmeza dos seus muros dir-se-ia inabalável.

Mentira. Mais uma mentira que nos foi impingida como se fôssemos obrigados a engolir o papel amarelado dos livros da História antiga deste mundo que não pára de rodar e envelhece a cada movimento de rotação.

A população de Gaziantep foi miscigenada por esse correr irrevogável do Tempo: turcos, arménios, judeus, refugiados da guerra absurda da Síria, esse país fantástico que pude percorrer numa altura em que a paz e a palavra dos homens servia para alguma coisa. Curdos, muitos curdos, gente que não é autorizada a viver nas suas próprias aldeias porque a Turquia também continua a viver à revelia dos direitos de muitos dos seus cidadãos a despeito de tantos a quererem o mais europeia, o mais ocidental possível, tanto quanto é minúsculo o seu espaço no território europeu. Interesses económicos e, sobretudo, de estratégia puramente militar, fazem com que olhemos para o país com algum apaziguamento. Esquecemos a violência, as perseguições, os assassinatos bárbaros e gratuitos porque queremos sentir-nos em casa a partir do momento em que aterramos em Istambul uma das mais belas e fascinantes cidades do planeta servida por uma companhia aérea, a Turkish Airways que serve de exemplo às mais eficientes companhias dos países do centro do continente. Gaziantep não servirá, certamente, para que ponhamos a mão na consciência em relação aos muitos erros que continuam a cometer-se naquele lugar do mundo onde o Homem fez questão de se tornar, há milhares de anos, o único bicho civilizado que sobreviveu ao Dilúvio enviado porDeus para nos fazer pensar com sabedoria sobre o caminho que tomávamos e percebe-se agora que de nada serviu. Deus já não envia dilúvios, porque o primeiro foi inútil, prefere fazer tremer a terra e derrubar os prédios das novas Babilónias. Diremos como sempre: «Seja feita a sua vontade!», mesmo que a vontade de Deus seja de a de assistirmos à dor das crianças fechadas em prisões de betão rezando para que alguém as retire dos destroços antes de serem esmagadas por eles.

Gosto de viajar sozinho. A solidão é o princípio e o fim das grandes viagens, aquelas que começamos por fazer dentro de nós. Fui a Gaziantep sozinho, desci de um autocarro decrépito, misturei-me com as gentes e senti-me em casa. Sinto-me em casa em todos os lugares, senti-me sempre em casa em todas as vilas, aldeias e cidades que demandei, basta não ter preconceitos nem exigências e ser apenas aquilo que temos de ser no ambiente que nos rodeia. Fui a Aleppo acompanhado por amigos, estendemo-nos ao sol da varanda do hotel mais barato que encontrámos, caminhámos para Palmira, essa maravilha da Roma do oriente, e já sei não como será Aleppo ou como será Palmira depois da guerra ter devastado tudo o que por lá havia pela simples vontade dos homens, pela incompatibilidade das crenças e pela mais pura das crueldades de haver economias que precisam de vender metralhadoras e tanques e mísseis e caças para poderem continuar a florescer e a modelar o mundo à força dos seus interesses. Não, não estou a levantar a dúvida da culpa: se ela é de Deus ou da voracidade cúpida dos homens que, aliás, terão sido feitos à sua imagem e semelhança. Estou a falar apenas de lugares marcados pela História e que, de um dia para o outro, parecem ter sido varridos pela História. De Gaziantep a Aleppo, dizem as enciclopédias, distam exatamente 97 quilómetros. É curioso. Quando estive em Gaziantep não me lembrei de Aleppo e quando estive em Aleppo não me veio Gaziantep à memória. E, no entanto, estavam ali tão perto. Mas partimos para um destino e nem sempre há outros destinos que venham a seguir porque apesar de a viagem em redor do mundo ser, para mim, sempre a mesma e interminável viagem, estou sempre certo, na hora de partir, daquilo em que vou em busca. Fui a Gaziantep para ir a Gaziantep. Fui a Aleppo para ir a Aleppo e a Palmira. Pouco importa que pelo caminho percorresse a Estrada de Damasco. 

Gaziantep e Aleppo são cidades irmãs, embora Aleppo venha de um tempo muito mais antigo e tenha sido habitada a partir do ano 5000 antes de Cristo. Hoje, no ano de 2023 após a vinda do Messias que deveria ter alterado os devaneios dos homens simples, continuam irmãs mas na desgraça e por isso voltei a viajar pelas imagens que guardo de cada uma delas e pela nobreza idêntica das suas fortalezas afinal não indestrutíveis. Sei que não voltarei nem a uma nem a outra. Participei da sua vida intrínseca, pisei o chão das suas ruas então intactas, que me levaria a querer ver a sua destruição? As cidades morrem como os homens que as constroem. Mas eu prefiro recordar vivos os meus mortos.