Tenho um amigo chamado Átila. Não é huno, é romeno, de Cluj Napoca, grande como um armário vitoriano mas sem gavetas, quero dizer, acho eu, se calhar até tem gavetas e nunca prestei atenção a elas, pelo menos tem uma gaveta enorme no lugar do coração. Se visitarmos a História, só a maledicência poderá dizer que os hunos foram particularmente odiosos, não havia muitos que os distinguisse de godos, visigodos e ostrogodos, eram todos tão bárbaros uns como os outros, e foram os impérios decadentes do ocidente que resolveram apelidá-los desse modo. Átila até é um nome terno, quer dizer Paizinho, e a despeito do medo que provocou às legiões romanas não era propriamente tido como um comedor de corações inimigos embora tenha ficado famosa a frase que dizia que nos lugares em que as patas do seu cavalo Othar pisavam a relva não voltava a crescer. O meu amigo Átila, o romeno, não tem um cavalo e apenas uma cadela pequenina e irrequieta que se enfia por debaixo os pés da gente e aposto singelo contra dobrado, como nos livros do Texas Jack, que a relva abunda por todos os lugares que ela pisa.
Nápoles, essa cidade que mira os fumos do Vesúvio numa baía resplandecente que lhe valeu a tirada «Vedere Napoli e doppo morire», como se depois de a vermos rodeada de todo aquele azul não houvesse outra maravilha maior sobre este planeta redondo e apenas ligeiramente achatado nos polos, também teve o seu Átila, nesse caso Attila Sallustro D’Amato, mas foi preciso que ele tivesse atravessado o Atlântico, vindo de Assunção, no Paraguai, carregado de chatices que deixavam os pais de cabelos em pé, ora porque tinha sinais de raquitismo, ora porque sofria de uma falta de desenvolvimento muscular, ora porque era um tímido compulsivo e não gostava de se dar com os miúdos da sua idade. Sim, Attila Salustro não era, decididamente, uma criança fácil. Os progenitores, Gaetano Sallustro e Anna D’Amato, ofereceram-no ao mundo no dia 15 de novembro de 1908. Quando abriu a boca para soltar o primeiro berro ninguém ficou com dúvidas de que tinha um belíssimos pulmões. Mas aos quatro anos, uma febre reumática atirou-o para uma cama durante meses e o médico receitou-lhe uma espécie de seguro de vida: que passasse o mais tempo que pudesse a chutar bolas contra uma parede. Pode ter deixado os vizinhos meio chalupas mas desenvolveu uma técnica apurada. Viria a dar-lhe um jeitão.
Os irmãos D’Amato eram oito e tinham uma fortíssima ligação entre eles. Quando os pais decidiram emigrar para Itália essa cumplicidade reforçou-se. Viviam nos arredores de Nápoles, na Villa Comunale. Aos doze anos já Attila estava debaixo do olhar atento de um consultor técnico de diversas equipas de futebol chamado Mario de Palma. Aos 17 anos assinou o seu primeiro contrato profissional com um clube que acabara de nascer da fusão dos dois maiores clubes napolitanos, o Internapoles. A convalescença programada pelo seu médico dera-lhe uma facilidade de remate e um estilo muito próprio de chutar de primeira sem necessidade de dominar a bola antes. O povo encantou-se com esse à vontade do jovem Attila e não tardou a adotá-lo como menino querido da cidade.
Com a separação dos clubes, Sallustro D’Amato passou a vestir a camisola da Associazione Calcio Napoli e fez dela tão sua que a usou durante onze anos a fio. Ganhou a alcunha de Il Babbio, O Ídolo, optou pela nacionalidade italiana, foi convocado para atuar pela Squadra Azzurra, estreando-se contra Portugal com uma valente goleada de 6-1, e deu-se ao luxo de fazer frente ao mais belo de todos os jogadores italianos de sempre, Giuseppe Meazza, pondo muitos a discutir qual deles era mais eficaz na sua posição. Ganhou mais alcunhas: Il Veltro e Il Divino. Não era filho de gente rica mas era orgulhoso como poucos tendo-se sempre recusado a receber dinheiro do seu clube para jogar. Era bem apessoado, agradava às moças, limitou-se a pedir que lhe oferecessem um automóvel no qual pudesse passear as namoradas que abundavam no seu dia a dia. O seu irmão mais novo, Orestre Salustro, chegou a fazer-lhe companhia em campo com a camisola azul celeste mas ficava a anos luz da categoria do irmão. A II Grane Guerra atrapalhou o futebol de toda a Europa e Attila viria a ficar largos meses sem jogar. Desiludiu-se. Em 1937 deixou o Nápoles perante a angústia dos adeptos e foi experimentar a Salernitana, Estava gasto. Em dois anos não participou em mais de 17 jogos. Tinha saudades da cidade que o adotara ainda criança e voltou, já não para jogar mas para se tornar numa figura inconfundível que acompanhava com paixão os treinos e os jogos do Nápoles. Ainda o convidaram para treinador em 1961 mas logo se percebeu que não tinha jeito para o cargo. Voltou para as bancadas. Os adeptos rodeavam Il Divino com um carinho absoluto. Sim, talvez com o tempo tivesse passado a ser uma espécie de Paizinho. Como Átila, o huno.