A coragem de lutar contra o sofrimento

O impacto que a saúde mental tem no comportamento dos futebolistas tem despertado consciências e deixou de ser assunto tabu. Especialistas afirmam que o acompanhamento é importante e a prevenção valiosa.

por João Sena

Durante muito tempo, a saúde mental foi um dos grandes tabus do desporto a nível mundial. Esse tabu começa a cair e o assunto tem despertado consciências a diferentes níveis.

O presidente do Sindicato dos Jogadores Profissionais de Futebol (SJPF), Joaquim Evangelista, e o psicólogo desportivo, Jorge Silvério, consideram que os jogadores profissionais que se debatem com problemas de saúde mental durante a sua carreira ou depois de abandonarem a atividade exigem um diagnóstico e uma estratégia de intervenção em tempo útil. Em Portugal, os últimos dados indicam que 26,4% dos jogadores têm sintomas preocupantes que influenciam a sua qualidade de vida. As formas de perturbação mais frequentes são: distress psicológico, perturbações do sono, ansiedade e depressão e distúrbios alimentares.

O quadro de saúde mental dos futebolistas é semelhante ao que afeta a população em geral, e os motivos estão bem identificados. «A pandemia e a crise económica agravaram as condições de saúde mental dos trabalhadores em geral e dos desportistas em particular. No caso dos futebolistas, atendendo a que se trata de uma profissão de desgaste rápido e curta duração, este tema ganha maior relevância», afirmou Joaquim Evangelista. Os problemas de saúde mental não dizem apenas respeito aos desportistas, atingem também a sociedade civil, como explicou o professor Jorge Silvério: «As percentagens de problemas de saúde mental são muito semelhantes entre a população em geral e os desportistas. Disto isto, há um aspeto que importa referir: há poucas profissões em que as pessoas são avaliadas constantemente e de uma forma tão exigente como os jogadores. Eles são submetidos a grande pressão, a um esforço maior pela intensidade dos jogos e a lesões. Os problemas acontecem a quem trabalha bem os aspetos físicos, técnicos e táticos, mas não trabalha a parte mental». Apesar de terem uma vida profissional intensa, este especialista é de opinião que «não houve um acréscimo de atletas a sofrer desse problema, o tema é que começou a ser mais falado, sobretudo por atletas de nível mundial», caso de Tiger Woods, Mike Phelps e Simone Biles. «O facto desses atletas assumirem os seus problemas tornou o tema mais fácil de ser abordado, embora reconheça que ainda há um estigma relacionado com a saúde mental no desporto».

 

Sintomas preocupantes

Há sintomas que revelam que há um problema com o atleta, como nos explicou Joaquim Evangelista. «Fizemos um inquérito aos jogadores, validado pela Sociedade Portuguesa de Psicólogos do Desporto e pela Federação Portuguesa de Futebol e identificámos um conjunto de situações que perturbam a saúde mental do atleta. As lesões e a doença prolongada são os aspetos que mais preocupam», mas há outras situações que potenciam reações negativas como «a mobilidade entre cidades e países, o desemprego e o final de carreira», explicou o dirigente. A exigência diária dos treinadores, a dificuldade em lidar com resultados inesperados e expectativas frustradas podem também criar fragilidades. «A performance e a queda de rendimento podem criar graves situações de stress no jogador», que muita vezes sofre pressões extra desportivas. «O Match Fixing e a dependência do álcool, tabaco e do jogo também afeta muito a saúde mental, tal como a instabilidade familiar. Em Inglaterra, por exemplo, três em cada cinco jogadores tinham problemas financeiros decorrentes do divórcio. Os investimentos ruinosos sugeridos por amigos e familiares, a discriminação racial e o ódio colocam muita pressão sobre os atletas, um em cada dez jogadores já foi vítima de discriminação e 10% já passou por violência física», afirmou o presidente do sindicato.

Conhecidas as causas, Jorge Silvério identificou os sintomas mais evidentes de que um jogador está com problemas. «O principal sintoma é alteração do estado de humor. Tão depressa está bem como fica deprimido, triste e angustiado, tem maior irritabilidade no dia a dia, sobretudo nas relações com os outros, o rendimento desportivo baixa, e apresenta perturbações fisiológicas, tais como dificuldade em dormir e perda de apetite. Todas estas mudanças são acompanhadas por uma pulsação mais acelerada, dificuldade em respirar e suar das mãos», explicou. Há um tempo para o atleta perceber que precisa de ajuda, «quando estes comportamentos se prolongam por três ou quatro semanas é sinal de que há uma alteração nos padrões normais», alertou Jorge Silvério.

Quando um atleta entra em contacto com o Sindicato de Jogadores, o acompanhamento é imediato. «Estabelecemos um protocolo com a Ordem dos Psicólogos do Desporto em que disponibilizamos mais de 400 técnicos para ajudar os futebolistas e nós pagamos as quatro primeiras consultas. Algumas dezenas de jogadores em fim de carreira, com graves problemas de saúde e de incumprimento salarial já recorreram ao sindicato. Procuramos sempre humanizar a relação através da proximidade e ajudamos nos aspetos psicológico, jurídico e financeiro», disse Joaquim Evangelista. No entanto, reconhece que ainda há alguma resistência. «As pessoas sentem-se estigmatizadas e preferem esconder o problema e, assim, torna-se difícil ajudar», lamenta. Embora os clubes profissionais tenham gabinetes especializados para apoio psicológico desde as camadas jovens até aos seniores, nem todos o utilizam. «Admito que haja profissionais que não falam dos seus problemas, nem pedem apoio como receio de revelar a sua fragilidade, e que isso possa significar uma desvantagem para eles», avisa. Já Jorge Silvério considerou que há uma grande diferença entre o que acontece nos clubes profissionais e nos outros: «Só uma minoria tem psicólogos de desporto na sua estrutura. Muitos clubes e associações não têm esse tipo de acompanhamento».

 

Melhor prevenção

O psicólogo de desporto não tem dúvidas em afirmar que a componente psicológica pode condicionar o rendimento desportivo e até a carreira de um jogador. «Os fatores mentais têm um impacto negativo no rendimento desportivo, mas é difícil de quantificar até porque muitas vezes está associado a outros fatores como a experiência do jogador e a sua personalidade. Há jogadores que perante um problema conseguem reagir, e o efeito no rendimento desportivo é mínimo, e outros em que o impacto é máximo e têm de parar a atividade ou, em casos, extremos, desistir da carreira», diz. Na sua longa vida profissional, com passagem por alguns clubes de futebol profissionais, deparou-se com jogadores que não conseguiram ultrapassar os problemas e abandonaram, mas também há casos de superação. «Trabalhei com um atleta em que a pressão e a ansiedade antes de um jogo eram tão grandes que, por vezes, o impedia de jogar. Foram colocadas à sua disposição um conjunto de ferramentas fisiológicas que baixaram a ansiedade e o ajudaram a voltar à competição. Depois há a parte cognitiva, que consiste em mudar os pensamentos negativos que prejudicam o rendimento», recordou.

O atual calendário de jogos é bastante penalizador para os atletas. «Os jogadores são seres humanos e não máquinas. O fator comercial não deve sobrepor-se à saúde do atleta. É impossível os jogadores acompanharem este ritmo, têm de ter descanso sob pena de entrarem em burnout», alertou Joaquim Evangelista, que defende «quadros competitivos menos pesados, períodos de descanso entre jogos, direito a férias». «Há jogadores que entre campeonatos nacionais, provas europeias e competições de seleções praticamente não descansaram. Os próprios treinadores têm consciência de que isso afeta a performance dos jogadores. Os jogadores quase não falam disso porque têm contratos de trabalho e não querem entrar em conflito com a sua entidade patronal», concluiu. Num estudo recente da Federação Internacional dos Jogadores Profissionais de Futebol (FIFPro), 82% dos treinadores afirmaram que os seus jogadores revelaram problemas de saúde mental devido à sobrecarga de jogos.