É um local de discussão, organização e trabalho. Tânia Mateus e Sandra Esteves abriram as portas da sede do Movimento Democrático de Mulheres (MDM) – a associação de direitos das mulheres nacional mais antiga ainda em atividade – para explicar porque, dizem, ainda existem “mil razões para lutar”. Se é verdade que o 25 de abril “foi uma revolução na vida das mulheres”, também é verdade que continua a existir um “hiato” entre aquilo que diz a lei e aquilo que são os problemas que muitas enfrentam diariamente. Das mais velhas e experientes às mais novas e revoltadas com o sistema, as manifestações surgem como um “grito” conjunto de todas as presentes e das que não puderam estar.
Dizem que ainda existem 1000 razões para lutar. O 25 de abril falhou com as mulheres?
Não acho que o 25 de abril nos tenha falhado. A nossa Constituição da República implementou trabalho igual, salário igual. Implementou direitos sociais e económicos extraordinários. O que falha são as opções políticas das últimas décadas que não concretizam este direito na realidade. As mulheres, em média, ganham 13% menos do que o salário dos homens. E 30% das mulheres ganham o Salário Mínimo Nacional (SMN). Cerca de 80% das famílias monoparentais são constituídas por mulheres. Falham políticas públicas. Ainda hoje, as mulheres são alvo de perguntas em entrevistas de emprego sobre se são ou se estão a pensar em ser mães. Os contratos não são renovados por estarem grávidas. Ainda recebemos muitos destes relatos. Estas são umas das mil razões.
Então são as políticas socialistas que falham?
Falham os vários governos das últimas décadas. Ainda estamos a recuperar de uma pandemia, na qual foram pedidos sacríficos a que as mulheres atenderam. A esmagadora maioria das mulheres não ficou em casa em teletrabalho: asseguraram os hospitais, as escolas, os lares de idosos. E as mulheres são uma minoria das lideranças em vários setores.
Ouve-se muito que para um cargo de liderança o que conta são as qualidades da pessoa.
Os cargos de maior responsabilidade pressupõem uma total disponibilidade para as suas funções. Abdicar da vida pessoal. As mulheres que decidem ser mães passam por períodos em que estão grávidas, tem licença de maternidade, e pode ser considerado como uma época menos produtiva. Isso não é discriminação? Há um conjunto de discriminações visíveis e invisíveis, e as mulheres são muitas das vezes alvos de discriminações invisíveis. As mulheres estão em maioria nas universidades, o que significa que alguma coisa terá acontecido para que deixem de estar em maioria nos cargos de maior responsabilidade nas empresas. Mais: era esperado que em 2021 houvesse um conjunto determinado número de artigos assinados por investigadoras. E o que aconteceu foi que houve uma diminuição drástica na produção académica de investigadora durante da pandemia de covid devido ao acumular de tarefas domésticas. A produção dos homens aumentou.
É consequência de uma sociedade patriarcal?
Vivemos numa sociedade que é discriminatória e exploradora de uns sob os outros. Enquanto isso acontecer, haverá uma opressão muito especifica sob as mulheres. E a emancipação das mulheres não existe sem que haja uma emancipação mais geral.
Mas acha que é possível haver um momento da nossa história em que não haja nenhuma razão para lutar? A igualdade não é utópica?
É importante existirem organizações como o MDM. A mudança existe. Há sempre aspetos a melhorar. Temos um conjunto de necessidades que, ao serem respondidas, poderemos passar para etapas mais refinadas. Mas temos de ter o básico, que ainda deixa a desejar em muitas matérias. Temos vidas precárias. O que eu espero é chegar a um momento em que estas organizações tenham um papel importante, mas é preciso primeiro construir um presente mais justo.
O MDM nasce em 1968. O seu primeiro encontro formal foi em 1973. Qual é o estado do associativismo e ativismo dos direitos das mulheres hoje em dia?
O MDM foi formalmente constituído em 1968, mas a luta vem detrás. Muitas mulheres vêm do Conselho Nacional das Mulheres Portuguesas, como a Maria Lamas. E ainda que o primeiro encontro formal tenha sido em 1973, há registos anteriores, como organizar um piquenique no dia 8 de março, assim como outras reuniões e iniciativas que visavam a liberdade e a independência. Claro que a situação das mulheres no tempo do fascismo é diferente daquilo que é hoje. Mas em alguns casos não estão tão longe quanto isso.
E como é a situação das mulheres hoje?
O 25 de abril foi uma revolução na vida das mulheres, acima de tudo na conquista de direitos da lei – uma das grandes reivindicações à data. E se é verdade que temos um quadro legal que salvaguarda a igualdade, o MDM considera que há um hiato muito grande entre aquilo que diz a lei e aquilo que é a realidade concreta na vida das mulheres.
Mas a intensidade das lutas e da participação do MDM é idêntica à que era no tempo da ditadura?
Não é possível fazer comparações. Uma coisa é o movimento associativo popular, que tem um espírito de intervenção específico. Depois, temos organizações como o MDM que se assume como um movimento de opinião em defesa dos direitos das mulheres. Aqui, sentimos que, apesar das conquistas da lei, a realidade é que essa igualdade ainda está muito longe de existir.
E notam uma grande adesão por parte de mulheres mais jovens?
Sim. Um dos nossos aspetos mais representativos, e que se destacou no último congresso do MDM, realizado no ano passado, foi o encontro de várias gerações das suas congressistas. Temos uma conselheira nacional que tem 96 anos – a professora universitária jubilada Dulce Rebelo – e tínhamos jovens de 18 e 19 anos. Todas lado a lado.
Esse choque de gerações manifesta-se em certas temáticas?
Acima de tudo existe respeito, nomeadamente pelas mulheres que vêm de uma geração em que os problemas eram diferentes. E compreendem que hoje as jovens têm problemas diferentes de quando elas eram jovens. E sentem que têm muito a aprender com elas. E Vice-versa. Estão muito atentas sobre, por exemplo, novas formas de prostituição online.
Há quem considere, nomeadamente feministas, que a prostituição deveria ser vista como um trabalho igual a qualquer outro. O MDM concorda?
A prostituição, e a exploração da prostituição, é uma forma de violência extrema sobre as mulheres, e que o MDM considera inaceitável. Nada tem que ver com emancipação, sexualidade ou com liberdade individual. Não pode ser considerado um trabalho.
Também há quem diga que é a profissão mais antiga…
Os assassinos também. E nós não consideramos um assassino um profissional. Não podemos ignorar que muitas destas mulheres que se veem confrontadas com a necessidade de se prostituir, não o fazem por ser a primeira opção.
Há mulheres que podem de facto escolher. Não?
Muitos dos que dizem que é uma opção, é sempre para as filhas dos outros. Se calhar para as nossas filhas, não o desejaríamos. Há aqui uma linha vermelha para o MDM e a nossa posição não é favorável à regulamentação e legalização da prostituição. Devem, sim, existir condições sociais e económicas para que as mulheres tenham outras alternativas.
Organizaram uma manifestação no Porto, no sábado passado, que contou com mais de mil participantes. É um bom número? As pessoas sentem-se solidárias com a vossa luta?
Aquilo que sentimentos ao distribuir folhetos na rua é, numa primeira instância, rejeição, mas depois voltam atrás, leem, e muitas das vezes conversam connosco e partilham experiências de vida.
Existe uma consciência geral das mulheres para os ativismos?
Algumas não tem essa consciência, compreensivelmente. As dificuldades do dia a dia são tão grandes que não há espaço para ir a uma manifestação. Mesmo durante os períodos mais críticos da pandemia, o MDM realizou sempre estas manifestações. Todas estas manifestações são um grito pelas que estão presentas e pelas que não puderam estar. A manifestação do Porto contou com mulheres de vários distritos do norte de Portugal. Mas as manifestações dos professores são um outro indicador, nas quais são maioritariamente rostos de mulheres a lutar. As mulheres lutam todos os dias.
Tem havido um aumento de inscrições ao MDM?
Entre novembro de janeiro, registámos 300 novas adesões em todo o país. Penso que somos a única organização de mulheres que tem núcleos em todos os distritos do país. O MDM tem lugar para todas as pessoas.
E dia 11 está marcada outra manifestação.
É mais um momento de reafirmação de que os nossos direitos não podem esperar mais. Não podemos ficar para sempre a aceitar um discurso de inevitabilidade. Nós não somos cidadãs de segunda classe. A lei ainda é só uma palavra. Queremos que saia do papel e que se torne real.
As organizações de mulheres não defendem todas o mesmo. Uma manifestação conjunta com as demais seria uma ideia no futuro?
São vários os momentos em que o MDM converge com outras organizações, nomeadamente em torno da prostituição, e convidamos organizações de mulheres a participar nas nossas manifestações, frisando sempre as nossas premissas. Quem está de acordo com estas reivindicações, será sempre bem-vindo. Existe uma ideia quase romântica de que no Dia Internacional da Mulher, todas as organizações se devem juntar. Mas nós não podemos marchar ao lado de quem defende os proxenetas. Se há organizações de mulheres que devem a prostituição como um trabalho, estão no seu direito. Não acreditamos nisso, portanto não podemos fingir que as diferenças não existem. O Dia Internacional da Mulher não é um dia oco. Tem uma história. Está muito ligado àquilo que são as lutas das mulheres.
E para que mulheres é que o MDM fala?
O MDM procura reunir todas as mulheres de todos os setores. Para as senhoras da limpeza até as advogadas e empresárias. O MDM tem espaço para todas as que se identifiquem com os nossos objetivos.
Não há qualquer filiação partidária?
Não é somente para as de esquerda, de direita ou de centro. É para as que defendem o progresso, a justiça, os direitos e a liberdade.
Então uma mulher que vote à direita pode ser feminista e aderir ao MDM.
Se defender estes princípios. E o facto de termos muitas deputadas na Assembleia da República é muito importante, mas por si só não chega.
O MDM defende a aplicação de cotas?
Os avanços da lei são significativos, mas como já falámos, a realidade tem demonstrado as suas insuficiências. Se olhar para a administração pública e para os seus quadros de chefia, se pensarmos que nas chefias intermédia as mulheres estão em maioria, o facto é que no topo já não aparecem. E aí não se aplicam nem as cotas nem a lei da paridade. Penso que a questão é mais complexa. A lei das cotas talvez forçou alguns partidos de direita ou extrema-direita que não são tão progressistas a ter mais mulheres. Acredito, porém, que a participação das mulheres em todas as dimensões da vida é muito mais do que a lei das cotas. Não se esqueça que a participação das mulheres não se esgota nos atos eleitorais. As mulheres estão em todos os setores da vida.
Acha que existe uma ‘feminização’ de algumas profissões?
Somos contra uma certa ideia de que existem certas profissões mais fáceis para as mulheres porque eventualmente será mais fácil para elas, por serem mãe, que se formem, por exemplo, professoras ou assistentes sociais. Em certas áreas das ciências, como as engenharias, as mulheres ainda não estão em maioria. Procuramos caminhar para uma maior participação das mulheres em todas as dimensões da vida.
Há mulheres que consideram que os seus direitos estão de alguma forma garantidos.
As mulheres não são um grupo homogéneo e não defendem todas a mesma coisa. E depois há, claro, questões de classe, de sexo, de género. Há mulheres que já atingiram um certo grau de independência que lhes permite não viver as principais discriminações que a maior parte das mulheres ainda vive.
Todos os partidos com assento parlamentar trabalham a favor dos direitos das mulheres?
Todos os partidos que consideram que existem cidadãos de primeira e de segunda e que defendem que há liberdades que podem ser colocadas em causa, ou defenderem visões mais conservadoras e retrógradas daquilo que é o comportamento das pessoas e das sociedades, manifestando discursos que são violentos, agressivos, racistas e xenófobos, não são promotores de igualdade. Todos os partidos que se encaixem aqui, o MDM considera que são contra os direitos das mulheres.
A extrema-direita no parlamento ajuda a um discurso de ‘anti’ igualdade? A dar força a vozes machistas e conservadoras?
Penso que há muitas pessoas descontentes com a sua vida e com os problemas que têm. E por vezes são conduzidas a um beco sem saída no que diz respeito a lutas e a expectativas, e responsabilizam aquilo que não conhecem para os seus problemas. Este é o perigo do populismo: pegar em problemas concretos, usar as pessoas e instrumentalizar o seu descontentamento. Depois, o que acontece, é que este populismo não leva ninguém para uma situação melhor, mas sim para pior. O perigo existe, e existe há muitos anos. O papel do MDM também passa por contribuir para o esclarecimento e para a elevação da consciência social e política das mulheres, para que sejam esclarecidas, que participem e para que se informem para lutas que sejam transformadoras nas suas vidas.