Por Luís Paulino Pereira, Médico
Se há temas a que sou particularmente sensível, este é um deles. Já tenho aqui abordado algumas das suas vertentes, manifestando o meu desagrado e apontando soluções; mas fico sempre com a sensação de que estou a ‘pregar no deserto’.
Hoje venho dar um exemplo concreto de como se pode destruir a esperança e a alegria de viver a um doente numa simples consulta médica, querendo acreditar que este caso possa ser uma exceção e não a regra nos nossos dias.
Refiro-me à prática médica e à forma como, por vezes, certos doentes são tratados, quando numa situação de aflição procuram desesperados alguém que os oiça, que os acolha e que lhes estenda a mão. Ninguém está livre de passar por esses momentos, nem nós médicos, que nessas ocasiões nos comportamos como o pior dos doentes e só aí nos apercebemos bem daquilo que os pacientes passam.
Aconteceu com uma doente minha na casa dos oitenta anos que, por estar com dificuldades na visão, marcou uma consulta de oftalmologia num hospital afamado. Depositou ali todas as expectativas, convencida de que uma simples mudança na graduação das lentes lhe resolvia o problema.
Ao chegar ao serviço, mandaram-na fazer um exame preliminar, que havia de entregar à médica no ato da consulta. Já com o relatório na mão, chegada a sua vez de se encontrar frente a frente com a minha colega, foi atendida de forma rápida e intempestiva – e, após uma breve leitura do documento, esta devolveu-lho e disse-lhe: «Tome lá». Sem estar à espera de tal reação, a doente perguntou: «Não terei de mudar de lentes?». A resposta não podia ser mais desanimadora e cruel: «Para quê? Vai ficar cega!».
A doente viu cair-lhe a alma aos pés. Ainda perguntou a medo: «Então, posso ir-me embora?», como quem diz, ‘não há mais nada a fazer?’ «Sim, pode ir-se embora». Terminava assim aquele triste encontro com a dita especialista em oftalmologia.
Em desespero de causa, a família ainda a levou a ouvir outra opinião, mas o seu destino estava traçado com o parecer inicial da minha ‘ilustre’ colega.
A partir daí, a doente nunca mais esqueceu aquela tenebrosa sentença. E hoje, segundo conta, ao abrir os olhos de manhã, a primeira coisa que faz é ver se ainda vê alguma coisa.
Isto é apenas a ponta do iceberg. O essencial está à vista. Temos muitos licenciados em Medicina, mas médicos há poucos. Em Medicina a cura nem sempre é possível. Nesses casos, porém, há todo um acompanhamento e outros caminhos a percorrer. Ninguém pode ir contra um diagnóstico definido pelas leis da ciência, como certamente aconteceu com a médica oftalmologista, mas também nenhum clínico tem o direito de, em poucos minutos, acabar com a esperança e a alegria de viver de um ser humano, por não ser capaz de lidar com uma situação diferente, que exige outro tipo de procedimento.
Voltemos à estaca zero. Quem entra em Medicina no nosso país? Quem tem vocação e qualidades natas para a exercer ou, ao invés, quem tem notas elevadas ou possibilidades económicas para suportar cursos no estrangeiro ou pagar propinas nas faculdades privadas? Quando o único critério é a nota final do secundário, o resultado está à vista – e quem sofre com isso é sempre o mesmo: o doente!
Lembro-me sempre de um jovem médico que me dizia: «Gosto muito da Medicina, mas não suporto falar com doentes». Está tudo dito. Obviamente, a culpa não é dele, mas de quem o deixou entrar na profissão, onde não são exigidos testes psicotécnicos, como seria fundamental.
Diz-nos a experiência que, quem não tem vocação, não é nem nunca será um bom médico, independentemente da nota com que chegou à faculdade. Ninguém se iluda: notas altas selecionam apenas bons alunos, mas não está provado que esses bons alunos venham a ser bons médicos. Licenciado é uma coisa, médico de bata branca é outra.
Olhemos o presente, mas a pensar no futuro. A história que hoje partilho é um bom exemplo. Oxalá possa servir como ponto de partida para uma mudança que se deseja e que deve ser feita quanto antes. A nossa saúde bem o merece. Tal como estamos, apenas deixo a pergunta: é isto que nós queremos?